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Dei no jornal com a notícia de um ciclo de conferências
sobre as relações entre Portugal e os Estados Unidos
realizada na Faculdade de Letras de Lisboa. Nela se refere a intervenção
do historiador e professor Borges de Macedo em que parece ter
afirmado, de passagem, que "Antero de Quental visitou a América
do Norte e veio de lá horrorizado". Escrevi "parece"
porque só quem nunca viu as suas próprias afirmações
reproduzidos nos jornais pode confiar na fidelidade das transcrições.
No caso, até no subtítulo já se distorce
a suposta declaração: "EUA aterrorizaram Antero
de Quental". Por isso tenho o cuidado de frisar que o meu
comentário visa a notícia publicada no jornal.
Não sei de onde terá vindo essa
informação. A grande fonte para todo e qualquer
dado biográfico sobre Antero é essa extraordinária
obra de José Bruno Carreiro, Antero de Quental - Subsídios
para a sua Biografia, a melhor biografia que em português
já me foi dado ler e creio que uma das mais desconhecidas,
por as duas edições terem sido publicadas em Ponta
Delgada, com distribuição limitadíssima.
Bruno Carreiro indica que a única referência feita
por Antero à sua visita à América do Norte
vem na Carta Autobiográfica. Tem meia linha e nenhum
adjectivo. Para descortinar o que se terá passado, o seu
biógrafo serve-se do opúsculo de António
Arroyo, A Viagem de Antero de Quental à América
do Norte, uma edição sem data da Renascença
Portuguesa, Porto.
Não é a ideia veiculada na citada
frase de Borges de Macedo que me ficou tanto da leitura dos Subsídios,
como do pequeno mas saboroso volume de Arroyo.
Antero foi no barco de carga de um amigo. Esteve
primeiro na Nova Escócia, mas andava muito mal de saúde.
Em Nova Iorque, a segunda e última paragem no continente
norte-americano, saiu muito poucas vezes do barco, onde tinha
de ficar em posição horizontal, por não poder
reter os alimentos. Entretinha-se a estudar alemão. Passeou
pelo Central Park e visitou uma exposição industrial,
mas pouco mais se sabe. De impressões directas da boca
de Antero, nicles. Andava tão definhado que o seu amigo
e capitão do barco Joaquim Negrão, bem como os tripulantes
do "Carolina", recearam que se apagasse mesmo ali.
Ao que parece, chegou no entanto a ter intenções
de ficar. Ponderou uma oferta para ensinar português ao
filho dum banqueiro riquíssimo que tinha interesses no
Brasil. Chegou mesmo a dizer que sim e combinou tratar das condições
do contrato. "Mas dias depois, como se achasse mais doente
e receasse não ter forças para bem desempenhar o
cargo de professor, declarou que desistia, que declinava a oferta."
Pelo menos assim conta Arroyo. E acrescenta que Antero estava
sem dinheiro nenhum, mas não quis aceitar um empréstimo
do amigo, por não saber se viveria o tempo suficiente para
lho pagar. Outra razão para se remeter ao barco, em vez
de, sem vintém, se aventurar pela cidade.
Foi de uma conversa com o engenheiro Mariano
Machado de Faria e Maia, conterrâneo de Antero, que António
Arroyo obteve a opinião de que as impressões de
Antero sobre a América não estariam muito longe
das de Herbert Spencer: "Reconhecia altamente a sua grandeza
e compreendia-lhe as causas, mas admirava-a mais do que a estimava.
A rudeza e a grosseria americanas repugnavam-lhe. E essa apreciação,
ainda assim, compreendia apenas os problemas políticos
e sociais, devendo de aqui deduzir-se que o poeta não ficara
a conhecer a América, que pouco ou nada ali vira, ou observara
" (pág. 67)
Fiquem os dados para a reconstituição
histórica devida. Isso apenas, visto ser indiferente se
ele gostou ou não de cá vir. Mas é uma grande
razão para que eu gostasse de ter vivido no século
XIX. Pensar que poderia ter ido encontrar o meu patrício
e conterrâneo nas docas de Nova Iorque e, sem a menor preocupação
de lhe mostrar a cidade, sentar-me na cabina com ele. A ouvi-lo
falar.
P.S. - A este meu breve apontamento de correcção
histórica, não deixa de ser interessante acrescentar
um pormenor. Arroyo usa uma confissão de Antero, feita
por carta a um amigo em Lisboa poucos anos mais tarde, quando
já residia em Vila do Conde, como explicação
dessa tentativa de se escapar para Nova Iorque. Escreve Antero:
"Eu vivo aqui eremiticamente, mas o espectáculo
de decomposição moral desta pobre terra, que aí
me estava continuamente debaixo dos olhos, Tinha-se-me tomado
insuportável, e fugi de Lisboa (sublinhado de Antero),
preferindo a solidão, onde ao menos posso, durante largos
períodos, ignorar coisas aflitivas."
pp. 165-167
© Onésimo Teotónio Almeida,
Rio Atlântico, Lisboa, Edições Salamandra,
1997.
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