A
mulher e o homem no
exemplo da romaria
Introdução
No
âmbito da história da religiosidade insular, um dos temas relevantes
e de um certo modo singular no arquipélago dos Açores diz respeito
à prática religiosa popular Romeiros de São Miguel. Esta
romaria que remonta ao século XVI e que se mantém ainda hoje
é realizada apenas na ilha de São Miguel e praticada exclusivamente
pelo sexo masculino. Esta prática ritual com características
bastante peculiares leva-nos a colocar algumas questões sobre
a diferenciação sexual e o testemunho sacrificial do homem nesta
romaria. A questão da exclusão da mulher na romaria deve-se
a uma diferença biológica de sexos ou a um condicionamento social
e cultural? O sacrifício corporal nesta romaria será assim a
forma pela qual o homem micaelense testemunha a sua própria
fé? E de que maneira o corpo do Romeiro testemunha, age e torna-se
credível?
A
partir deste questionamento, pretendemos apresentar apenas alguns
traços ilustradores do papel do homem e da mulher a partir do
exemplo da romaria Romeiros de São Miguel, conscientes
de que este tema é demasiado complexo para ser analisado exaustivamente
no âmbito destas páginas.
Relativamente
ao terreno de estudo, a nossa análise concentrar-se-à em geral
na ilha de São Miguel e em particular na freguesia de Água de
Pau, local de realização de questionários e entrevistas. Este
pequeno meio rural, repleto de crenças, festas religiosas, mitos
e sacrifícios, é o lugar ideal para estudar a relação existente
entre a comunidade e a religiosidade.
1.
Religião
Oficial e Religiosidade Popular nos Açores: enquadramento histórico
Desde o início do povoamento
das ilhas, a partir da primeira metade do século XV, os Açores
ficaram desde logo submetidos espiritualmente à Ordem de Cristo,
cujo objectivo principal era o de estabelecer e propagar a religião
cristã. Assim as populações açorianas viviam perfeitamente enquadradas
pela estrutura religiosa.
A
construção de várias igrejas, capelas e ermidas (do século XVI
até ao século XVIII), como o papel e o controlo do vigário de
cada paróquia sobre a comunidade são factores que estruturaram
rigidamente a vida religiosa dos açorianos. Por exemplo, o padre
tem o dever estrito de exercer a sua autoridade sobre os
fregueses obrigando-os a uma prática rigorosa da vida cristã
... e, caso não houvesse obediência às regras
estipuladas, os prevaricadores eram punidos através do pagamento
de multas e mesmo a possibilidade de excomunhão. Mas, a autoridade
eclesiástica não se restringia aos actos de culto estabelecidos
pela Igreja, pois a piedade individual e comunitária era
também alvo de imposição e de controlo (...) que iam
desde as procissões das almas, da Virgem, do Santissimo, a realizar
semanalmente, (...) e atinge um nível de coerção como se fosse
obrigatória. Tudo isto nos mostra como o poder eclesiástico
funcionou não só como autoridade no que se refere à cristianização,
mas também no que diz respeito ao controlo dos comportamentos
morais e sociais do povo açoriano.
Bettencourt da Câmara, ao abordar
a relação Igreja – povo açoriano do meio rural, observa que
ao lado da liturgia oficial católica, o povo açoriano como
que criou a sua liturgia, mais próxima de si, a que pode aderir
com facilidade e em que activamente participa. É, pois neste meio rural moldado moral
e socialmente pela Igreja, onde o analfabetismo e a oralidade
são traços identitários da população, que a religiosidade
aparece e é vivida não só,como afirma Carreiro da Costa
como expressão, por nós próprios revelada, de Deus, mas sim
também como uma prova segura e permanente de que o trilhamos. Assim, e segundo José Luís Garcia Garcia
La religiosidad popular no se constituye en los restos de
una ignorância secular del pueblo, sino en el proceso secular
de asentamiento de la religión oficial. Allí donde no existe
una religión oficial, no cabe hablar tampoco de uma religiosidad
popular, en el sentido habitual del concepto.
A partir deste conceito, podemos
considerar que mesmo partindo de uma eventual matriz cristã
comum, as várias ilhas se tenham diferenciado ao longo do tempo
no exercício dos seus cultos e crenças, assumindo singularidades
em determinadas manifestações sociais do religioso.
A ilha de São Miguel, como destaca
Francisco da Costa, é aquela onde o povo é mais religioso,
de uma religiosidade feita de temor, sincera, sem fanatismo,
mas nebulosa e apavorada…. Este espírito de índole religiosa do
micaelense, que pode ser comprovado segundo o mesmo autor, na
designação de castigo, aplicado, não só às grandes catástrofes,
como a pequenas desgraças triviais, a morte, a morte de um animal
doméstico, uma colheita escassa, uma doença, um prejuízo, torna-se
evitente no culto Senhor Ecce Homo, que se venera na igreja
do antigo Convento da Esperança das freiras claristas em Ponta
Delgada, e nos Romeiros, estranha peregrinação que faz lembrar
as antigas penitências e peregrinações medievais.
2.
Os Romeiros de São Miguel: origem e estrutura da romaria
… a Igreja-Instituição
age, investiga, procede, recompensa (raramente) quase sempre
castiga e vê em todas as manifestações, ainda que naturais,
o castigo de um Deus, descontente com as atitudes humanas, procurando
reconduzir os homens ao recto caminho através de duras provas.
A partir desta ideia podemos
considerar que a imagem de Deus para o micaelense era associada
a um Deus protector mas ao mesmo tempo um Deus temido por “justiceiro”. Assim o modo de pensar do micaelense esteve
directamente ligado ao factor religiosidade-medo, medo de vingança
de Deus sempre presente, sempre temido, sempre respeitado, sempre
pronto a castigar, se houvesse ofensa. Os Romeiros de São
Miguel é uma das práticas populares que se enquadra perfeitamente,
nas suas origens, nesta ideia religiosidade-medo. Para além
disso ela constitui além de uma das mais antigas demostrações
de fé religiosa, uma prova que os micaelenses não esquecem as
suas tradições.
Sobre a origem desta romaria, a pouca bibliografia existente aponta
para o século XVI, mas a data exacta é ainda um problema controvertido.
Temos, no entanto conhecimento que esta prática terá resultado
de uma série de cataclismos de natureza vulcânica e que tanto
afligiu a população micaelense entre 1522 e 1586. Revisitando
a obra Saudades da Terra, do cronista Gaspar Frutuoso,
verificamos que, em 1522 e em 1563, houve dois grandes abalos
de terra que destruiram uma parte da ilha. No ano de 1523 grassou
uma epidemia de peste que matou um número considerável de habitantes,
para além das cheias e das secas que destruíram muitas culturas.
Estes dados são referidos por Gaspar Frutuoso como um castigo
divino: a Deus, que
mandou este castigo, prometeram os povos desta terra fazerem
procissões no tal dia, cada ano, como sempre fazem e apontam para a hipótese de que o aparecimento
desta romaria se tenha dado nesta época.
Pelo que é dito por Carreiro da Costa, estas procissões
continuaram a ser realizadas mas feitas em determinada época
do ano, escolhendo-se para elas a Quaresma, provavelmente por
ser esta a quadra mais propícia à penitência e em que os trabalhos
agrícolas exigem menos braços.
Relativamente à organização e estrutura da romaria,
as referências bibliográficas da época não nos permitem verificar
se estas se mantiveram ou se modificaram. Segundo a voz popular,
“esta tradição já vem de muito antigamente” e, segundo Bettencourt
da Câmara esta prática na segunda metade do século XVII já
tinha possivelmente adquirido a maior parte das características
que ainda hoje exibe.
Podemos
definir os Romeiros de São Miguel como grupos ou ranchos de
penitentes que, durante uma das semanas da quaresma, percorrem
a ilha de São Miguel a pé (200 km) e visitam todas as igrejas
onde haja exposta a imagem da Virgem Maria ( cerca de 100 templos).
Os ranchos de Romeiros constituem-se por freguesia e possuem
uma dimensão variável (pode ir dos 50 até aos 200).
A
partir da recolha minuciosa de informações sobre a organização
e estrutura do grupo de Romeiros da freguesia de Água de Pau,
reunimos um certo número de características particulares e próprias
desta romaria.
Assim, o “rancho de romeiros”
é constituído por um Mestre que tem que ser uma pessoa
honrada e que toda a comunidade respeite. Ao Mestre compete
exercer a autoridade necessária, todos lhe devem obediência
e sempre que precisarem de algo devem pedir-lhe a permissão.
É também o Mestre que se encarrega da oração, quase sempre
improvisada, nas igrejas. A seguir ao Mestre vem o Contra-Mestre.
Compete ao Contra-Mestre substituir o Mestre em
todos os domínios, nos momentos da sua ausência (orações na
igreja, etc). A seguir ao Contra-Mestre aparece uma outra
personagem importante - o Procurador das Almas - que
deve “contabilizar” a oração do rancho, isto é, a ele se dirigem
as pessoas de cada freguesia por onde passam, para pedir “as
avé-marias”; ele, por sua vez, informa o número de avé-marias
pedidas a um outro membro do grupo chamado de Lembrador das
Almas, que tem por função o “bradar às almas”, levando o
rancho a recitar tantas avé-marias quantas as pedidas pela pessoa
alheia do grupo. Segundo o Procurador das Almas do rancho
de Água de Pau, o pedido desenrola-se da seguinte forma:
Habitante:
Irmão, quantos são?
Procurador
das Almas: Irmão (ou Irmã) são 70.
Habitante:
Irmão uma avé-maria pelas almas do purgatório.
Este é o único diálogo que se repete durante toda
a caminhada sacrificial para o Procurador das Almas, notando-se assim que ele é feito de uma forma
rigorosa e padronizada, de maneira a evitar qualquer tipo de
conversa prolongada com a comunidade.
Assim o habitante deverá rezar
70 avé-marias (número de romeiros do rancho) e o Procurador
das Almas informa o número de avé-marias pedidas (neste
caso é uma) pelo habitante ao Lembrador das Almas e este
último recita em conjunto a avé-maria pedida, o que no total
faz 70 avé-marias. Este princípio de reciprocidade é respeitado
estritamente pelos romeiros e pela pessoa que pediu.
Esta
romaria é composta, também, por um ou dois Dispenseiros,
que têm a função de ocorrer às necessidades dos romeiros durante
a marcha (alimentos, água, produtos farmacêuticos, chamar um
médico se necessário...), por dois Guias, a quem cabe
a condução do rancho, num itinerário tradicionalmente estabelecido,
e pelo Cruzado
que é aquele que leva o crucifixo e que normalmente é uma criança.
O rancho, quando em marcha, adopta
uma formação convencional constituida por três alas de romeiros. As alas dos lados são compostas pelos romeiros,
estando à frente de cada ala os Guias. A ala do meio
integra o Mestre, o Contra-Mestre, o Lembrador
das Almas, o Procurador das Almas e o Cruzado:
A forma de organização do rancho
leva-nos a reflectir sobre a questão representativa de unidade
social, com uma certa estrutura hierárquia mas que, ao mesmo
tempo, apaga traços caracterizadores da vida social corrente,
como conflitos, diferenciação social, individualismo, visto
que, no interior do grupo e durante os oito dias de penitência,
os valores de humildade, igualdade e fraternidade são explicitamente
introduzidos no ritual pela forma de tratamento mútuo - irmão
- e pelo abraço, modo habitual de saudação no interior do rancho. A harmonia vivida no grupo é uma característica
que marca o Romeiro. Alguns testemunhos são particularmente
significativos a este propósito: “nós somos uma grande família”;
“ sentimos uma união muito forte”; “a gente no rancho somos
todos irmãos”.
Uma outra característica a salientar desta romaria diz
respeito às insígnias do Romeiro, interpretadas, em termos simbólicos,
como referentes ao culto da Paixão e Morte de Cristo. Cada Romeiro
apresenta-se vestido com o traje que usa diariamente, mas este
traje é recoberto por acessórios que nada têm a ver com o modo
de vestir do quotidiano micaelense: um xaile pelos ombros, que
simboliza o manto de Cristo; um lenço ao pescoço que simboliza
a coroa de espinhos de Cristo; uma cevadeira às costas que simboliza
a cruz que Jesus transportou ao Calvário; um terço na mão e
um ou mais ao pescoço; um bordão na mão que simboliza o ceptro
de Jesus. Quanto a este último, o Romeiro não pode apoiar-se
ao bordão durante a caminhada, excepto em caminhos muito perigosos
e em frente à igreja durante a oração. Todos estes elementos
simbólicos reforçam o carácter penitencioso do Romeiro relembrando-lhe
o suplício e morte de Cristo. A partida é precedida de várias
reuniões e ensaios dirigidos pelo Mestre sobre as orações, os
cânticos e as regras a seguir durante a romaria. O Romeiro antes
de partir confessa-se, comunga e assiste à missa a fim de iniciar
a sua viagem penitencial em estado de graça.
Segundo o Mestre Roberto Vieira
(Mestre dos Romeiros de Água de Pau), nas freguesias por onde
que o rancho passa, entra na igreja, deixando os bordões em
fila no chão do adro. Segundo as suas palavras “ o bordão fica
sempre cá fora, porque é uma forma de substituir a nossa presença”.
À porta da Igreja, o mestre começa a oração cantada e iniciada
sempre da mesma maneira “Chegamos em santa hora/ aos vossos
divinos pés/ Cobri-nos com o vosso manto/Rainha dos altos céus”
Dentro da Igreja são apresentadas as intenções por que oram
os romeiros e, depois da meditação, salva-se o rancho dizendo
Seja para sempre louvada a vida de Jesus paixão e morte de
nosso Senhor Jesus Cristo. Por fim, o Mestre termina a oração
com as quadras finais: “ Nossa oração já fizemos/Senhora em
vossa presença/Ir embora já nós queremos/Senhora dá-nos licença;
Romeiros vamos embora/seguir nossa Romaria/louvando a toda a
hora/ cantando a Avé-Maria”. Esta oração de delicadeza e cortesia é uma
das orações transmitidas oralmente de geração em geração. A
seguir, continuam o caminho até à freguesia mais próxima. Ao
fim do dia ( 8 horas da noite, porque o romeiro se levanta por
volta das 4 horas da manhã, havendo assim um horário rigoroso)
os romeiros ao chegarem à freguesia prevista, dirigem-se ao
adro da igreja, cantando até que sejam recolhidos pelas famílias
da dita freguesia. Um dos membros da família dirige-se ao Mestre
e informa-o do número de romeiros que deseja receber em sua
casa. Normalmente são as crianças as primeiras a serem recolhidas,
depois as pessoas mais idosas e por fim os restantes adultos.
Quando o alojamento é reduzido, os que não puderam ser recolhidos
pelas famílias pernoitam na igreja local.
Em
casa da família que o acolhe há um conjunto de regras a seguir.
O romeiro ao entrar na casa profere a saudação evangélica: A
paz esteja convosco, e a família responde Amen Irmão.
Antes do jantar trazem-lhe água quente
para lavar os pés – la coutume du lavement des pieds “du
jeudi saint”, pratique dans l’Eglise catholique, est un geste
d’humilité en souvenir de la scène où Jesus lava les pieds de
ses fidèles selon les règles de l’hospitalité orientale. O romeiro janta,
agradece e deixa um terço com a família dizendo: “Aqui têm os
irmãos um terço já rezado, que amanhã retomaremos.” Este terço
rezado pelo romeiro é uma oferta simbólica e serve como testemunho
à familia que o recebeu. De madrugada (4 horas da manhã) a freguesia
é acordada pela campaínha do mestre, meio de chamar e de reunir
os romeiros. Eles saudam-se entre si sempre de irmão, porque
esta a única forma de tratamento imposta na romaria, e continuam
o percurso.
Uma outra característica que
não podemos deixar de realçar consiste no tradicional canto
e oração. Durante toda a romaria o canto desempenha um papel
relevante, mas elementos como a dança é inconcebível e a alimentação
é reduzida ao necessário, pois há mesmo romeiros que por promessa
fazem o percurso a pão e água. O próprio canto, pelas suas caracteristicas
revela fortemente este sentido de penitência e sacrificio e
o lúdico é completamente ausente nesta prática.
Para
além das orações feitas aos santos e à Virgem Maria, é recitada
a secular oração “Livrai-nos Senhor do Fogo, da Fome, da Peste
e da Guerra”. Esta oração é uma das mais tradicionais da romaria,
pois ela exprime o temor do micaelense pelos cataclismos naturais.
Além desta oração secular, a chamada “Avé Maria dos Romeiros”
cantada é outro traço tradicional e característico desta viagem
sacrificial. Esta oração ancestral foi transmitida oralmente
de geração em geração. Deste modo, ela tornou-se o distintivo
musical da romaria. Ela anuncia a chegada dos romeiros a cada
lugar. Toda a gente a conhece mas ninguém ousa repeti-la, porque,
segundo a tradição, ela pertence unicamente a este ritual. É
o ritmo lento deste canto, o seu carácter rigorosamente monódico
e pungente, o peso atribuído a certas sílabas, o tom de voz
com austeridade e tristeza, que se perpetua como forma de tradição
oral e memória colectiva.
3.
O conceito de Gender no exemplo dos Romeiros de São Miguel
Após a apresentação da romaria,
torna-se relevante fazer uma breve análise do papel que a mulher
e o homem desempenham tanto a nível social como religioso. A
partir do exemplo da romaria, será que a questão da exclusão
da mulher resulta de uma diferença biológica de sexos ou de
um condionamento social e cultural?
Responder a esta questão é algo
de bastante empreendedor para desenvolver neste artigo, mas
tentaremos traçar algumas considerações sobre as funções do
homem e da mulher na vida social e religiosa, a fim de tentar
responder ao nosso questionamento.
Numa comunidade repleta de tradições
e de crenças, como a de Água de Pau, em que persiste ainda um
sistema de organização patriarcal, a identidade feminina revela
uma certa dicotomia em relação à identidade masculina. A Mulher
em geral é, de portas para dentro, recatada, embiocada, tratando
dos filhos e do marido, submissa a este, que ele é o dono, o
senhor da casa, o ganhador, ela apenas é a administrada, a regeira
do casal. (… )A subordinação de mulher ao marido sente-se em
todos os actos da vida, antes e depois do casamento.
A partir desta descrição, observamos
que todos este actos comprovam a sujeição da mulher ao homem.
Mas esta dicotomia de funções não se dá simplesmente no meio
familiar, mas também no seio comunitário. Normalmente a praça
pública e os cafés constituem os lugares privilegiados de conversação
dos homens, enquanto que a casa e a igreja são os lugares mais
frequentes das mulheres. Esta
divisão sexual traduz-se num sistema de funções sociais bem
definidas e bem distintas entre o homem e a mulher, havendo
quase que uma corporação masculina de um lado e uma corporação
feminina do outro. E a nível religioso, também existe esta dicotomia
de sexos? Qual é a percepção da Igreja em relação à mulher e
ao homem?
Nos Açores, a religião cristã
oficial procurou agir sobre as gentes da cultura oral tentando
a clarificação do sagrado. A partir desta noção a Igreja pretendia
atingir dois objectivos principais: depurar o sagrado de
todos os elementos profanos e impor canônes éticos que regulassem
toda a vida social. Um dos grandes esforços
da Igreja era sobretudo o de estabelecer uma rigorosa disciplina
dos comportamentos individuais e colectivos, de forma a obter
um controlo total da comunidade. O papel da mulher foi uma das
principais preocupações da Igreja, pois ela foi objecto de
medidas restritivas na organização cultural e nos respectivos
pressupostos doutrinais .... No enquadramento religioso, a mulher era vista
como mágica e fêmea, bruxa e feiticeira, procurada pelos
necessitados e desejosos e temida por todos. Certamente, é por esta razão que a mulher era
considerada como o objecto primeiro de repressão disciplinar:
Ela constituía com a noite um perigo duplo que ameaçava a
consciência colectiva e punha em causa ou dificultava o processo
de aculturação que a Igreja mantinha em curso.
Face a esta reflexão, a Igreja
tomava todas as medidas e precauções para que todos os espaços
sagrados se encontrassem fechados e que houvesse interdição
da realização de actos cultuais ( romarias, novenas, via-sacras,
procissões) durante a noite, pois a Igreja via que estes actos
realizados à noite pelos homens juntamente com as mulheres originavam
desvios e escândalos. Os relatos das visitas pastorais dos Prelados
da Diocese dos Açores (datados de 1696, 1698, 1699, 1707) revelam
perfeitamente a proibição sobretudo da mulher nestes actos de
culto durante a noite: Capítulos há que determinavam simplesmente
que mulher algũa corresse via-sacra ou fizesse romarias
e novenas ante manhãa, desde as Avé-Marias até ao dia seguinte,
sob pena de excomunhão maior.
Assim,
a mulher causa do pecado sexual, de desvios e perversão adquire
uma imagem negativa, inferior e malífica em relação ao homem.
A culpa e os castigos não só recaíam sobre a mulher, mas também
lançavam penas sobre os maridos, pais, irmãos e tios que
não impedissem a transgressão referida. Não só lhes eram cominadas
multas pecuniárias, como depois de tomados a rol, eram enviadas
ao Ouvidor do distrito para que fossem castigados conforme a
sua culpa merecesse. O valor de culpabilidade atribuído à
mulher e à família a quem ela pertencesse era considerado como
uma desonra, indignação e indecência aos olhos da sociedade.
Além disto, era relevante a imposição da Igreja na separação
do homem e da mulher, pois eram numerosas as advertências
no sentido de separar os homens e as mulheres no recinto sagrado.
Davam-se instruções consoante a arquitectura dos templos de
modo a garantir tal separação. Mas a “obsessão” da Hierarquia eclesiástica
em controlar todo o acto que levava a desvios
à verdadeira doutrina e às normas estabelecidas pela
Igreja, não se dava apenas nos espaços religiosos, mas também
nos espaços tradicionais de sociabilidade. As assembleias, os
serões, as bodas, as festas dos baptizados, noivados e casamentos,
todas estas tradições de divertimento eram qualificados pela
Igreja de pagãos, pois os efeitos mais perniciosos decorrentes
destes actos consistiam na destruição da modéstia e virtude
das mulheres. A repressão recai assim duma forma intensa
sobre a mulher.
Todas
estas considerações aqui apresentadas sobre a luta da Igreja
na separação entre o sagrado e o profano, através do controlo
severo na vida social das comunidades, levam-nos a reflectir
sobre a questão da Romaria Romeiros de São Miguel ser
exclusivamente de carácter masculino. A questão da exclusão
da mulher nesta romaria deve-se simplesmente à sua própria qualidade
de mulher ou a uma diferenciação ligada ao condicionamento social
e cultural?
Um
questionário feito à comunidade de Água de Pau (um total de
97 questionários respondidos: 69 do sexo feminino e 28 do sexo
masculino) permitiu reunir um certo número de considerações
sobre a acepção desta romaria para o homem e para a mulher.
O objectivo deste questionário consistia em conhecer o significado
e a representação dos Romeiros para o homem e a mulher e também
as razões pelas quais a
mulher não participa nesta romaria. A partir das respostas dadas,
pudemos constatar que, de uma maneira geral, os Romeiros
representam tanto para o homem como para a mulher uma penitência,
um sacrifício. Quanto à questão da interdição da mulher
na romaria, tanto o homem como a mulher deram as seguintes razões:
1 - a mulher é mais fraca fisicamente que o homem (15 respostas
do sexo masculino e 34 do sexo feminino); 2 – por causa das
condições higiénicas ( 5 respostas do sexo masculino e 16 do
sexo feminino); 3 – porque é uma tradição só feita por homens
(8 respostas do sexo masculino e 15 do sexo feminino ); 4 –
Jesus era um homem ( 4 respostas do sexo feminino). A partir
destas respostas, concluímos que a fraqueza, a falta de força
física constitui a principal justificação ideológica da sua
exclusão.
Revisitando
e apoiando-se em alguns estudos feitos dobre a temática Sexo
e Gender (género) e considerando que existe uma certa
distinção entre estas duas noções, tentaremos compreender se
esta exclusão se deve de facto e unicamente ao sexo (características
biológicas) ou ao género.
Marie-Claude
Hurtig, Michèle Kail e Hèlene Rouch distinguem estas duas noções
– sexo e género – da seguinte forma :
Cette distinction associe à la notion de sexe les caractéristiques biologiques
permettant de différencier les hommes des femmes. À la notion
de genre, elle associe les attibuts psychologiques, les activités,
et les rôles des statuts sociaux culturellement assignés à chacune
des catégories de sexe et constituant un système de croyances,
dont le principe d’une détermination biologique est le pivot.
Assim, podemos considerar que
o sexo se traduz pela diferença biológica e o género está associado
mais propriamente a uma diferenciação social e cultural dos
sexos. Como salienta Eleni VARIKAS L’analyse de genre part
en effet de l’hypothèse que ce qu’est un homme ou une femme
dans une société et une époque données, est le produit d’une
organisation sociale hiérarchique qui différencie les tâches,
les fonctions, les richesses, etc., selon la distinction de
sexe. Partindo deste principio e transpondo-o
para o exemplo dos Romeiros, podemos desde já considerar que
a justificação ideológica da exclusão da mulher na participação
da romaria não se deve ao sexo biológico, mas ao género, visto
que esta divisão sexual
foi causada pelo condicionamento social e religioso da época.
Como sublinha Christine Delphy
… le genre serait un contenu, et le sexe un contenant.
Le contenu peut varier, et certaines estiment qu’il doit varier ;
mais le contenant est conçu comme invariable, dans sa nature,
puisqu’il est la nature, « ce qui ne bouge pas … » Desta maneira, as categorias ou funções
sexuais – género – de uma sociedade não são determinadas biologicamente
– sexo - , mas contróem-se, evoluem ou transformam-se. No caso
dos romeiros, a proibição da mulher em participar na romaria
advém de aspectos culturais engendrados pela hierarquia eclesiástica.
Com efeito, a partir do século XV a imposição da Igreja no controlo
das mentalidades do meio rural levou a que a imagem da mulher
adquirisse um valor negativo e inferior à do homem. No entanto,
esta diferenciação foi-se engrandecendo e manteve-se até hoje
como tradição e ritual de ordem cultural, o que explica de certo
modo a razão pela qual a mulher não participa nesta romaria,
visto que os Romeiros de São Miguel é a única romaria
que se pratica desde o século XVI até aos nossos dias. A exclusão
da mulher nesta romaria não se traduz como um factor de inferiorização
do sexo feminino, definido biologicamente e fisicamente de mais
fraco que o sexo masculino, até porque a mulher do romeiro não
participa activamente na romaria,
mas desempenha a função do marido no meio familiar
durante a semana de penitência, pois é ela que dirige todo o
trabalho durante a ausência do marido, havendo assim, de um
certo modo, uma participação passiva da parte dela.
4.
O sacrifício corporal como testemunho de fé
No exemplo da romaria aqui delineada,
o testemunho corporal leva-nos a reflectir sobre o estatuto
do corpo e os suportes que ele utiliza para que esta prática
seja reconhecida como testemunho de fé.
Segundo David LE BRETON: Chaque
groupe social elabore un registre propre de mises en jeu du
corps dans le cadre de l’échange avec autrui […]. Chaque groupe
a ses signes spécifiques pour connoter physiquement un message
ou un sentiment dans le cadre de l’interaction. Assim, o romeiro exprime o seu testemunho
de fé a partir de um certo número de marcas corporais (gestos,
vestuário, orações) num espaço e num momento bem definidos.
Os três elementos portadores do testemunho
corporal do Romeiro
a)
O corpo sacrificado do Romeiro
O corpo do romeiro sacrifica-se
percorrendo durante uma semana a ilha de São Miguel a pé. São
as marcas da dureza que aparecem de dia para dia cada vez mais
insuportáveis, o cansaço da caminhada que começa a manifestar
todo o tipo de sequelas como as bolhas e calos nos pés, as dores
musculares, o frio, o calor. Todos estes estigmas físicos provocados
pela marcha constituem assim os elementos de carácter testemunhal
do romeiro. A marcha é assim o gesto ou acto principal de expressão
corporal, pois é através dela que o corpo se ressente e revela
traços ou marcas físicas que reforçam a identidade do romeiro
durante esta semana de penitência.
b)
O corpo que reveste os símbolos de Cristo
O próprio corpo revestido pelas
insígnias próprias à romaria é um outro referente ligado ao
testemunho corporal do penitente. O modo como a disposição dos
atributos é feita no corpo do romeiro sublinha o carácter próprio
do ser romeiro. O xaile pelos ombros – representação do manto
de Cristo - , o lenço ao pescoço – símbolo da coroa de espinhos
-, a cevadeira às costas – identificação à cruz transportada
por Cristo -, um terço na mão e um ou mais ao pescoço, um bordão
na mão – símbolo do ceptro de Jesus. Todo este conjunto de elementos,
pela sua composição e apresentação, adquirem o seu verdadeiro
valor unicamente no corpo do romeiro durante o acto sacrificial,
uma vez que estes acessórios só são utilizados pelo romeiro
e unicamente durante a semana da romaria. Assim, todos estes
elementos simbólicos reforçam o carácter penitencioso do romeiro
relembrando-lhe o suplício e morte de Cristo.
c)
A voz
que canta orações ancestrais
A voz do romeiro que declama
e canta durante o dia inteiro as orações ancestrais e tradicionais
deste ritual é outro referente testemunhal.
A oração Livrai-nos Senhor do fogo, da fome, da peste e da
guerra, transmitida de geração em geração, é um símbolo
tradicional e identitário da romaria e da sua origem, pois o
fogo simboliza os tremores de terra de 1522 e 1563, a peste
representa a epidemia ocorrida em 1523 e a fome corresponde
às secas e cheias que destruiram grande parte das culturas e
conduziam à fome. Além desta oração, existe também a tradicional
Avé Maria do Romeiros cantada de uma forma bastante peculiar.
Triste e melancólico, este canto se repete durante toda a marcha.
É um canto sem dança, onde o lúdico se encontra completamente
ausente nesta prática ritual. O carácter rigorosamente monódico,
como também o peso atribuído a certas sílabas, fazem deste canto
um emblema da romaria. É a Avé Maria dos Romeiros, cantada
de forma plangente que anuncia a passagem dos penitentes em
cada freguesia. Este canto reservado unicamente à romaria representa
uma das formas orais mantida até aos nossos dias.
d)
O reconhecimento da Comunidade
A comunidade desempenha também
um papel muito importante na realização desta prática, porque
ela constitui o testemunho ocular e auricular do acto romeiro.
Este testemunho do romeiro adquire o seu reconhecimento porque
é o corpo do penitente que demonstra face a um público o sacrificio
e o sofrimento, através da postura, de gestos, de marcas físicas.
Cada atitude, cada gesto, cada oração exprimida pelo corpo sacrificado
do romeiro atingem o seu verdadeiro valor através do reconhecimento
da comunidade. Como sublinha Pierre Ansart c’est cette connaissance d’autrui, par laquelle
un sujet comprend immédiatement le sens de certaines actions
et expressions d’autrui et est capable, en quelque sorte, de
se mettre à sa place.
Além do respeito e do reconhecimento
é a empatia do corpo romeiro que cria a base de credibilidade
desta prática tradicional religiosa e que vem a ser memória
colectiva.
Conclusão
Nesta abordagem à religiosidade
popular, através do exemplo dos Romeiros de São Miguel, fizemos
aflorar apenas algumas temáticas que nos pareceram dominantes.
Tentámos mostrar - a partir de uma apresentação geral do poder
e do controlo da Igreja na vida social e religiosa do povo açoriano
em geral, e micaelense em particular – o papel desempenhado pela mulher e pelo homem
a nível social e religioso. Consideramos que a diferenciação
de sexos, no exemplo da romaria analisada, não
se deve a uma diferença biológica, mas cultural. Assim
a justificação ideológica da exclusão da mulher na romaria pela
fraqueza física em relação ao homem torna-se neste contexto
ultrapassada. A imagem negativa e inferior da mulher, imposta,
historicamente, pela Igreja nas mentalidades individuais e colectivas,
constituiu o factor principal da exclusão do sexo feminino na
romaria.
Para além disso, tentámos demonstrar
a importância do testemunho corporal e do seu reconhecimento
por parte da comunidade. Como sublinha Eugénio Lacerda Rituais,
enquanto eventos críticos ou eventos comunicacionais de uma
sociedade, são bons para pensar formas básicas de sociabilidade,
na medida que os atores vivem, nos acontecimentos rituais, a
experiência de seus modos básicos de interação, modos tais socialmente
significativos e reconhecidos pelo grupo envolvente. Assim, esta tradicional prática religiosa não
poderia ter algum sentido, nem o seu verdadeiro valor, sem a
presença destes dois agentes – o Romeiro e a comunidade. O corpo
aparece aqui como elemento principal da romaria. Os gestos,
as atitudes, as insígnias do Romeiro são elementos que a Comunidade
testemunha e confere credibilidade e reconhecimento.
Carmen Ponte Goujon
CRLA / Archivos
(FRE 2793 do CNRS)
Universidade de Poitiers