ESTER DE SÁ MARQUES - Universidade Federal do Maranhão

 

A NATUREZA TRADICIONAL E MODERNA DA FESTA

No contexto de uma cultura cada vez mais complexa, globalizada e desancantada é muito difícil identificar na constituição de um fenómeno cultural os aspectos que legitimam a sua experiência tradicional e os que fundamentam a sua experiência moderna, porque estes dois tipos de experiência estão presentes na vida quotidiana com as duas faces de uma mesma realidade, ao mesmo tempo subjectiva e objectiva. Tanto uma como a outra definem representações múltiplas e variáveis que ocorrem nos momentos sagrados e profanos da vida quotidiana exigindo de cada um de nós comportamentos específicos, conforme os rituais a que somos submetidos. Daí, a intenção deste texto é situar alguns dos limites destas duas dimensões, a partir do exemplo da festa e, ao mesmo tempo, perspectivar como as interacções interferem na organização do universo simbólico deste fenómeno cultural.

Nesta discussão, é preciso começar por definir e criticar a tendência que consiste em tratar de maneira dicotómica a relação entre a tradição e a modernidade, conforme refere Adriano Duarte Rodrigues. Não se pode confundir tradição com antiguidade ou modernidade com a actualidade, porque nem a tradição é necessariamente uma realidade antiga, nem a modernidade é uma realidade recente, actual. Dessa forma, enquanto antiguidade e actualidade são recortes cronológicos da história, a tradição e a modernidade são representações do mundo que se encontram em qualquer época e que coexistem em todas as culturas.
De facto, esses dois termos designam representações do mundo, modos de ser e de estar e estilos de vida que podem ser encontrados em qualquer
época histórica, em qualquer situação, em qualquer festa, conforme os ideais, valores, experiência estética e modelos ritualísticos transitórios e definitivos; maneiras de legitimar e racionalizar as acções, os comportamentos e os discursos; de integrar os acontecimentos num todo coerente; de dar sentido às experiências.
Consequentemente, a tradição e a modernidade são termos que coabitam dialecticamente em qualquer fenómeno cultural, em permanente tensão/consenso segundo a perspectiva histórico-social adoptada.


2 Diferenças entre a Tradição e a Modernidade

Mas, apesar de serem interfaces de uma mesma dinâmica, os dois termos possuem significações diferentes que estão na base de sua origem. Deste modo, o termo tradição vem do verbo latino tradere, composto de dare, dar ou transmitir, e do prefixo trans, passar completamente, de um lado para outro. O termo derivou traditio que significa ao mesmo tempo uma acção de entregar, uma traição ou a transmissão narrativa de acontecimentos e histórias passadas. Assim, traditio é tanto o mestre que ensina ou transmite um ensinamento como o traidor que entrega (algo
ou alguém) ao inimigo.
Por sua vez, o termo moderno foi inicialmente entendido nos primeiros tempos da história como um movimento de retorno a uma conduta reta, justa e equilibrada, graças à aplicação de medidas adequadas, ao estabelecimento da saúde física, da conduta moral e do equilíbrio das formas. Posteriormente, na Renascença, o termo passa a ter um sentido semelhante ao de época, funcionando como um acto inicial de fundação, destinado a restabelecer a objectividade da experiência, mas também a justa medida das coisas, dos juízos, dos equilíbrios. É assim, que o termo moderno se apresenta como rotura em relação à Idade Média e em contraposição à Idade Antiga, como designações parcelares de tempo.

Apesar de estarem presentes como interfaces de um mesmo fenómeno, a tradição mantém em relação à modernidade algumas características que a tornam específica. Inicialmente, tradição não significa simplesmente a transmissão de saberes ou conhecimentos de uma pessoa a outra, de uma situação a outra. A transmissão a que a tradição está irremediavelmente ligada é uma experiência simbólica originária e arquetípica que se estabelece através de uma memória longa que é naturalizada pelo hábito e pelo costume passado de geração a geração. A cada vez que a tradição é ritualísticamente lembrada através do carácter sagrado da festa é, ao mesmo tempo, esquecida pela experiência profana para que possa ser interiorizada como um saber inato, que lá esteve antes, que está agora e que estará amanhã.
A tradição é sempre uma experiência totalizante, cujo tempo parte de uma natureza mítica sagrada, feita de retornos cíclicos e reminiscências que dão existência tanto às realidades sociais como aos fenômenos naturais, resultado de uma sabedoria coloquial. Assim, não existe, para a tradição, distinção entre a ordem natural, o domínio da linguagem e o mundo da cultura porque a perspectivação do mundo é completa, feita de uma vez por todas, e para sempre como justificação da experiência cultural. Daí a ideia comum de que a tradição está ligada a um ciclo que se repete e que se alimenta do instante em que se expressa integralmente. Mas, ao contrário da visão museológica que pensa a tradição como algo imutável, parado no tempo e no espaço, a visão hermenêutica adoptada neste texto permite pensar a tradição como uma experiência dinâmica e aberta, cujos conteúdos são mantidos e renovados a cada vez que é transmitida num tempo muito lento que é dado pela interiorização de suas regras de manifestação e de habituação.

Portanto, a tradição é um tipo de experiência cujo discurso é predominantemente narrativo porque é sempre capaz de ser contado e recontado inúmeras vezes, sem perder nunca o seu fio condutor, a sua dimensão originária de onde partiu e para onde voltará, mesmo que seja interpretado e reinterpretado quantas vezes foram necessárias por quem o ouvir. «a narrativa é feita de tempos que se encadeiam e apóiam-se uns sobre os outros. Uma temporalidade autónoma tende assim a constituir-se. Ela institui um tempo que não depende de nós e com relação ao qual devemos aprender a situar-nos. Ela tende a atribuir-se o seu próprio fundamento em origens que a amarram em um solo ou a suspendem a um céu. Ela inscreve um arquivo na memória dos viventes. (Mouillaud 1997 : 76-77)
Por isso, a tradição faz parte de uma memória longa que é eminiscência, pois só volta por meio de vestígios sempre iguais e diferentes, ao mesmo tempo, já que este retorno depende da capacidade de apreensão de cada um. A memória aqui tem um papel fundamental pelo sentido que dá à experiência humana, permitindo não só a transmissão dos conhecimentos passados, mas a integração desses acontecimentos num todo coerente, através de um saber prático em que cada participante se reconhece como parte de uma cadeia comunicativa, baseada na intersubjetividade simbólica.

Desta forma, a tradição é uma experiência que é sempre vivida individualmente, embora possa ser percebida colectivamente e só assim aceita integralmente. É também uma transmissão que se dá completamente, de uma vez por todas porque está vinculada a um sentido que está sempre em movimento, em acção, em direcção a um horizonte de sentidos (sentimentos), na forma como o entende Gadamar. De facto, para este filósofo, o horizonte de sentidos é um horizonte que está sempre aberto, mas que também está sempre em fuga, isto é, quanto mais nos aproximamos do sentido mais ele nos escapa porque cada vez mais exige a nossa capacidade de apreensão, representação, interiorização, habituação e compreensão não, por acaso, as mesmas etapas do processo hermenêutico da comunicação.
Nesta perspectiva, a tradição está directamente ligada à ideia de pertencimento, de enraizamento a um universo simbólico de onde retira a sua legitimidade. De facto, Segundo Chevallier e Gheerbrant, o símbolo é um dos factores mais poderosos de inserção na realidade graças à sua função socializante. Cria uma comunicação profunda com o meio social. Cada grupo, cada época tem os seus símbolos; vibrar com eles é participar nesse grupo e nessa época.» (Chevalier & Gheerbrant 1982 : 22-23) Porém, a realidade que o símbolo exprime não é a mesma que representa na sua aparência social. É qualquer coisa indefinida, mas profundamente sentida como a presença duma energia física e psíquica que fecunda, cria e alimenta. O indivíduo sente-se fazendo parte dum conjunto que o assusta, tranquiliza e lhe ensina a viver. O espectador participa da natureza do símbolo que responde a essa participação numa espécie de simbiose imaginária. Tanto a identificação quanto a participação eliminam as fronteiras das aparências e conduzem a uma experiência comum, a união indissociável entre o homem e objeto. É por isso que a percepção do símbolo exclui a atitude do simples espectador e exige a participação do actor.
Neste sentido, é pela experiência tradicional que o indivíduo cria referências em relação a si mesmo, em relação ao mundo, em relação aos outros; que explica e justifica subjectiva e objectivamente as situações quotidianas e transcendentais (sonhos, fantasias, alucinações); que define e enquadra os papéis sociais e os actores respectivos de cada um e que, enfim, estabelece as identidades individual e colectiva em cada tempo e lugar. «Concebido como a matriz de todos os significados socialmente objectivados e subjectivamente reais, o universo simbólico possui um carácter nômico ou ordenador da realidade, integrando as experiências pertencentes às diferentes esferas num todo coerente.» (Berger & Luckman l985 : 131-l42)

Sendo assim, nós só percebemos quem somos ou que estamos num determinado tempo e lugar quando sentimo-nos parte desta situação; quando imperceptivelmente ou quase inconscientemente, damo-nos conta de que, afinal, estamos em segurança. Este sentimento de segurança, por sua vez, facilita-nos a abertura aos Outros, dá-nos a capacidade de gerir os conflitos, as tensões e as contradições que temos de resolver no dia-a-dia. Partimos sempre para o mundo tendo como base um quadro de referência comum por onde fundamentamos o nosso comportamento e tentamos compreender o comportamento dos outros.
É, por isso, que não podemos fugir da tradição porque é ela que estabelece o fio da nossa história individual e da nossa memória colectiva. Podemos até contradizê-la, negá-la ou aceitá-la tal como se apresenta, mas não podemos fugir dela, sob pena de ficarmos sem chão, sem quadros de referências, sem mundo. Tal como a realidade que nos antecede, nos acompanha a vida toda e permanece depois de nós, a tradição sedimenta os saberes por onde esta realidade evolui e o máximo que podemos fazer é evoluir junto com ela, aperfeiçoando-a ou criticando-a para que se ajuste ao nosso mundo. Enfim, é tudo isso que nos permite pensar a tradição como uma experiência religiosa porque somente ela aparece-se-nos como uma experiência totalizante e misteriosa, que nos acalma quando estamos perdidos; que nos referencia quando precisamos encontrar um norte para a nossa vida; que nos dá tranquilidade e equilíbrio para seguirmos em frente perante a vida e a morte.

Por outro lado, a modernidade é sempre uma experiência parcelar, racionalizada que se apresenta a nós como um conhecimento lógico com início, meio e fim. Em vez do tempo e do espaço circulares que perfomatizam a experiência tradicional, o tempo da modernidade é fragmentário e atravessado pelas contagem das horas, enquanto o espaço se resume a limites visíveis e calculados por um território concreto.

Em vez do discurso narrativo da tradição, a modernidade opta pelo discurso explicativo, informativo que reduz a capacidade de interpretação de quem o diz e a competência criativa de quem o recebe porque nele tudo está dado, inclusive os significados que o acompanham como uma sombra. Nesta perspectiva, a ideia de pertencimento é fragilizada pelos deslocamentos que os indivíduos são obrigados a fazer em função dos papéis que assumem no dia-a-dia, sendo a cada vez um personagem diferente, uma espécie de cidadão do mundo às avessas. Na experiência moderna, a memória é linear, contínua e cumulativa, resultado de experimentações (perfomances) transitórias e multifacetadas por várias narrativas de naturezas opostas.
A experiência que caracteriza a modernidade é, por isso, uma experiência parcelar, errática, fluída e rizomática, incompleta em seus significados e vazia em seus sentidos porque em vez de resultar numa estética sensível, acaba por resultar numa estética perfomática, ou melhor, numa esteticização da experiência, apenas pautada pelo momento, pelos agoras do tempo presente. Aliás, o tempo da experiência moderna é sempre o presente, sem qualquer vinculação com o passado e o futuro, já que tudo se esgota no momento mesmo em que é encenado e explicado, sendo logo substituído por outra experiência que está à caminho. Daí que a modernidade precisa e, muito, da tradição para existir porque somente quando as duas interagem é que é possível perceber a totalidade de um fenómeno cultural.

Sendo assim, o que define a modernidade em relação à tradição é, antes de tudo, um ideal de rotura para com as visões míticas e religiosas do mundo, numa tentativa de fundamentar a experiência do mundo, da vida social e da cultura, através da razão, do agir individual autônomo e da liberdade. É por isso que se pode reconhecer tanto ou mais modernidade em determinadas manifestações do passado do que em muitos fenómenos recentes e que, nos estilos e modos de vida actuais, transparecem por vezes representações do mundo mais tradicionais do que em alguns estilos de vida do passado.

Portanto, a mentalidade tradicional não consiste num mero retorno de estilos e de comportamentos; e o próprio gosto pelo antigo pode, aliás, apresentar-se como uma das marcas originais da modernidade. Isto acontece porque o mundo sacralizado e cindido da tradição permanece como uma das fontes de sentido (arkhé, a origem autêntica,o fundamento do sentido) da experiência contemporânea ao lado do mundo dessacralizado e profano da modernidade. Assim, moderno é tudo o que se demarca em relação àquilo que permanece tradicional, tal como o tradicional é tudo o que se demarca em relação àquilo que se apresenta como moderno. O que está, por conseguinte, na base da dialética entre um termo e outro é uma experiência transitória, uma troca criativa de formas em que a tradição atualiza a sua arckhé na modernidade como um estoque de lembranças, um arquivo de reminiscências, enquanto a modernidade fundamenta e legitima a sua dinâmica na tradição, como decorrência da natureza simbólica e multifacetada de qualquer fenômeno cultural.

O que torna permanente essa troca é, portanto, um fundo arcaico, isto é, um princípio mítico constitutivo dos conhecimentos religiosos, sociais e culturais pré-modernos e que volta sempre que é solicitado pela contemporaneidade para compor novos reflexos e efeitos de sentido que, depois, são lançados no quotidiano efêmero da experiência coletiva para compor um conjunto de estratos subterrâneos, resultado de um imaginário primitivo constante. Do que é possível vivenciar como positivo, do que é possível esconder sob as cinzas, pela sua negatividade, e do que é possível neutralizar como experiência.
3- A natureza quiasmática da Festa


É na festa que a tradição e a modernidade, enquanto dimensões da experiência se fundem e se confundem dialogicamente porque é no ritual de celebração que estes termos se expressam com toda a sua força. Primeiro, porque a festa é sempre uma experiência mediadora e ritualística entre o real e o transcendente, entre o sagrado e o profano, entre a superfície e a profundidade da vida quotidiana. Segundo, porque a festa é um tempo e um espaço reservados à plena expressão dos sentimentos (sentidos) humanos sendo, por isso, um fenómeno indissociável do processo de pertenciamento do indivíduo a uma dada colectividade. E, terceiro, porque a festa permite o nosso reencontro com os Outros, num processo de partilha e de comunhão (comunicação) que é único e singular a cada vez que acontece porque é sempre totalizante e completa enquanto vigora.

É a festa que sacraliza o processo social porque a participação neste tipo de evento é completa e incondicional, o que resulta na sua força singular já que, em qualquer circunstância, reforça os laços sociais mesmo quando a celebração é efémera e os resultados negativos. Por isso, o ditado popular que diz: o melhor da festa é esperar por ela reflecte a lógica circular que a caracteriza é uma lógica circular que é sempre encantatória, dinâmica e mágica porque supõe a espera, a preparação e, posteriormente a lembrança como uma recordação teleológica que é sempre um vir-a-ser.
Por isso, a festa-evento precisa acontecer com todas as suas fases para que a sua lembrança possa servir de vestígio para a festa-retorno que se anuncia no momento mesmo do encerramento do evento anterior, num ciclo interminável de vida e de morte. Assim, cumprir com este ritual é cumprir uma promessa, cujas regras é a adequação de um comportamento a princípios, determinações ou normas adequadas para o seu desempenho. Não cumpri-la adquire o sentido de contestação, de revolta e de oposição qualquer que seja o motivo, mas sobretudo, quando o motivo já traz implícito seu perdão libertador decorrente de uma necessidade transcendente e sagrada. A celebração da festa e a sua conclusão significa o triunfo da vida sobre a morte, a redução da incerteza e a posse de novo equilíbrio.

Mais do que em qualquer outro momento, é na celebração que o carácter profano se junta ao sagrado numa dialéctica que celebra os dois pólos contrários primordiais à existência. O fim da celebração indica o que desaparece na inelutável evolução das coisas, representa o aspecto perecível e destruidor da existência, mas significa também a revelação e a introdução - ritos de passagem para uma nova fase, deixando claro a coexistência de forças contrárias. O fim da celebração é a transposição para um nível mais elevado e superior; mudança inevitável, mas é também uma iniciação; libertação dos sacrifícios e preocupações. «O profano deve morrer para renascer para a vida superior conferida pela iniciação. Se não morrer para o seu estado de imperfeição, impede a si próprio todo o progresso iniciático.» (Chevalier & Gheerbrant l982 : 460-46l)

É, ao mesmo tempo, sacríficio pela responsabilidade que o acto de celebração comporta com todos os seus custos (perdas e ganhos), mas é também catarse pela energia fundamental que explode e esgota o ser que participa nela. É rotura e prolongamento; é desejo e traição; é alegria e excesso; é dia e é noite. É, portanto, um fenómeno ligado desde sempre ao mito da deusa Deméter, deusa da fertilidade, da terra-mãe, cujo culto remonta a mais alta Antiguidade. Ocupa o centro dos mistérios iniciáticos de Elêusis que celebram o eterno retorno, o ciclo das mortes e dos renascimentos, no sentido de uma espiritualização progressiva da matéria. Deméter é, assim, a deusa das alternâncias entre a morte e a vida, da terra cultivada, do ciclo vegetativo, da passagem da natureza à cultura, do selvagem ao civilizado.

Há na irrupção da festa «os instantes de paroxismo, com suas permissões múltiplas (refeições mais abundantes, vestuários novos, aproximações sexuais), com seus exageros fecundos, suas inversões de papéis e de status, a reinstalarem no seio da identidade redutora da cotidianidade, o caos primordial regenerador que, neste sentido, representaria não o princípio da desordem (como dá a entender a acepção ordinária do termo caos), mas o princípio da heterogeneidade concebida pela termodinâmica como a ordem inicial, e por conseguinte, como fenómeno de vida.» (Prado l977 : 2l7).


Na festa, o tempo presente se confunde com o passado porque recorda-o para projectá-lo para o futuro, tornando-o suportável diante da dimensão trágica da vida quotidiana. «Graças à festa, o passado, embora irrepetível e, neste sentido, para sempre perdido, retorna de algum modo ao presente, por ocasião da celebração festiva da memória, entendida como reminiscência despoletada pela identificação e pelo reconhecimento colectivo de suas marcas.» (Rodrigues 2004 : 3) Deste ponto de vista, segundo o autor, a festa é, ao mesmo tempo, celebração do enigma da existência e processo destinado a torná-lo suportável ou pelo menos aceitável, graças a um processo que podemos considerar como a sua esconjuração simbólica.

É, portanto, uma celebração a-temporal e an-espacial porque se desloca no tempo moldando-o com a sua retórica e, no espaço que se transforma num território simbólico. O tempo, neste presente contínuo, é sazonal, reversível, mítico, primordial, marcado pelo ciclo e enraizamento, cujo fundamento é o retorno de situações e actos que a memória grupal reforça atribuindo-lhes valor. Um tempo sempre igual a si mesmo, que consagra o instante, o preciso instante que reitera o passado no presente com um olho no futuro; que volta todos os anos, através de um ritual de expectativa e precisão, garantindo a memória de cada um, ou seja, o mesmo conjunto de significados que os re-atualiza, e onde todos estão presentificados e activos.

Deste modo, se com a memória explora-se a dimensão temporal do homem, com a pertença está em cena o conteúdo espacial da existência. O espaço sagrado, neste caso, é o real, o que existe como fundação do mundo e que constitui rotura na homogeneidade do espaço comum, permitindo a cada um re-conhecer-se como igual, a partir do re-conhecimento do outro, dentro da vida grupal, de uma vivência colectiva que é preenchida no decorrer da produção sacralizada, envolvendo fortes laços de solidariedade e identidade. Este espaço funciona como suporte de comunicação, inter-relação, organização de sentidos e fecundidade do universo simbólico que se faz e se refaz a cada caminhada, mas funciona também como centro do universo, onde é possível formar uma nova rede de relações sociais, voltada para o afectivo e o religioso. É nesse espaço, portanto, que a comunicação deixa de ser pura informação, para ser o ponto de interacção e intersecção entre cada um dos participantes, num processo constante de retroalimentação de palavras, sentimentos, acções e reacções.

Mas, como a festa trabalha com dois tempos e com dois espaços é importante destacar que na sua dinâmica de atualização, o tempo é também percebido como profano e determinado pelo desenvolvimento das suas actividades produtivas que não tem um começo místico, mas que depende do motivo da celebração, dos recursos financeiros e da vontade do grupo. É o tempo do preparo das fases de celebração, das alianças que precisam ser feitas para que tudo ocorra conforme a programação, da distribuição dos papéis sociais e das responsabilidades de cada um, da construção de uma imagem e de uma identidade. Nessas alianças é que a festa promove sua reactualização cultural, transforma-se, moderniza-se, num processo que tem por base uma triagem natural dos elementos que compõem o seu conjunto.

Da mesma forma, o espaço funciona como um local de reposições da festa que não é mais somente ritual, mas é também evento, cujo tempo além de profano é cronometrado, regulamentado e cobrado, deixando à mostra o carácter empresarial que permeia o jogo de produção e difusão da festa, no qual as relações profissionais e empregatícias ocorrem. O certo é que não se pode entrar e sair imune desse espaço, de mãos vazias, passar imune pela experiência, pois o engajamento leva à penetração num universo simbólico, rico de produção de significados, que não só tornam a festa um espaço concreto de relações como estabelecem articulações entre este fenómeno e a sociedade mais ampla. A festa é como uma empresa de construção do mundo, como uma actividade de ordenação totalizante, um nomos, cujos princípios são considerados não somente como úteis, desejáveis ou justos pelos participantes, mas igualmente inevitáveis, aspecto ou parte da natureza universal das coisas. Há uma visão cíclica da natureza, uma reversibilidade e flexibilidade que se produz e reproduz como parte do mundo sagrado.

Neste sentido, a festa é pura prática partilhada num espaço em que cada acção tem sua razão de ser, mesmo que aparentemente não possua uma lógica. A festa é o instante esperado, o lugar de fala, que possui como características a coesão interna, onde cada hábito ou crença tem sua significação; a vivência, não consciente, mas emotiva, intencional e teleológica; a reelaboração constante em que tudo é refeito e nem tudo é herdado e a perspectiva psicológica, em que a espontaneidade e a motivação funcionam, não como vestígios de sobrevivência, mas como forças motrizes de uma natureza única, singular. Portanto, parte de uma bildung, isto é, de uma formação moral, cultural e estética do homem.

A festa no cotidiano representa um evento sagrado sendo utilizada pela comunidade para designar os encontros sociais, independente da forma assumida ou do conteúdo manifestado. Constitui um tempo regido por normas diferentes das que regem o tempo comum. Um tempo dilatado para o surgimento do novo e do desconhecido, através da transcendentalização da rotina, do relaxamento das regras sociais e do perigo de quebra e desintegração. Daí os sentimentos de alegria e apreensão, que representam tanto uma ocasião para o afrouxamento das fronteiras como para o aparecimento da tensão, decorrentes da situação festiva.
Em conclusão, a festa agrega duas características fundantes. Por um lado, a festa faz parte de uma cultura para ser , regida por rituais que transpõem o espaço, por etapas e fases que lhe dão substância narrativa e um lugar no social, vivida como costume na construção de um mundo vivido e de uma memória colectiva, a modernidade aparece como pressuposto básico de uma cultura para ter, parte de uma dimensão imediata Kultur, exteriorizante e dirigida e, da necessidade de atualizar a mensagem transmitida anualmente.
Assim, designar-se tradicional num momento e moderna num outro faz parte da natureza plural e universal da festa porque reforça a sua identidade, possibilitando a sua sobrevivência diante dos demais fenómenos culturais, estimulando a concorrência, e repondo a cada momento os vários papéis e actuações que a festa representa/apresenta nos espaços público/privado. Por isso, ser tradicional e moderno ao mesmo tempo não desvincula a festa de sua história, de suas perspectivas culturais, mas a enquadra num contexto próprio e numa dinâmica que reforça a sua singularidade.

A tradição, ou seja, o estoque cultural cujos elementos do passado agem sobre o inconsciente e o imaginário sociais intervindo na modelagem do presente, actualiza-se, incorpora-se às demais esferas culturais, num processo de recuperação permanente da arché, enquanto a modernidade intercambia o sistema simbólico da festa com o mundo profano, transformando-a em produto, espectáculo, mercadoria, ampliando o seu carácter plural com objectivos empresariais, lucros e responsabilidades junto aos diversos sectores sociais na formação simultânea de uma imagem e de uma identidade.

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