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A NATUREZA TRADICIONAL E MODERNA DA
FESTA
No contexto de uma cultura cada vez mais complexa, globalizada
e desancantada é muito difícil identificar na
constituição de um fenómeno cultural os
aspectos que legitimam a sua experiência tradicional e
os que fundamentam a sua experiência moderna, porque estes
dois tipos de experiência estão presentes na vida
quotidiana com as duas faces de uma mesma realidade, ao mesmo
tempo subjectiva e objectiva. Tanto uma como a outra definem
representações múltiplas e variáveis
que ocorrem nos momentos sagrados e profanos da vida quotidiana
exigindo de cada um de nós comportamentos específicos,
conforme os rituais a que somos submetidos. Daí, a intenção
deste texto é situar alguns dos limites destas duas dimensões,
a partir do exemplo da festa e, ao mesmo tempo, perspectivar
como as interacções interferem na organização
do universo simbólico deste fenómeno cultural.
Nesta discussão, é preciso começar
por definir e criticar a tendência que consiste em tratar
de maneira dicotómica a relação entre a tradição
e a modernidade, conforme refere Adriano Duarte Rodrigues. Não
se pode confundir tradição com antiguidade ou modernidade
com a actualidade, porque nem a tradição é
necessariamente uma realidade antiga, nem a modernidade é
uma realidade recente, actual. Dessa forma, enquanto antiguidade
e actualidade são recortes cronológicos da história,
a tradição e a modernidade são representações
do mundo que se encontram em qualquer época e que coexistem
em todas as culturas.
De facto, esses dois termos designam representações
do mundo, modos de ser e de estar e estilos de vida que podem
ser encontrados em qualquer
época histórica, em qualquer situação,
em qualquer festa, conforme os ideais, valores, experiência
estética e modelos ritualísticos transitórios
e definitivos; maneiras de legitimar e racionalizar as acções,
os comportamentos e os discursos; de integrar os acontecimentos
num todo coerente; de dar sentido às experiências.
Consequentemente, a tradição e a modernidade são
termos que coabitam dialecticamente em qualquer fenómeno
cultural, em permanente tensão/consenso segundo a perspectiva
histórico-social adoptada.
2 Diferenças entre a Tradição e a Modernidade
Mas, apesar de serem interfaces de uma mesma
dinâmica, os dois termos possuem significações
diferentes que estão na base de sua origem. Deste modo,
o termo tradição vem do verbo latino tradere, composto
de dare, dar ou transmitir, e do prefixo trans, passar completamente,
de um lado para outro. O termo derivou traditio que significa
ao mesmo tempo uma acção de entregar, uma traição
ou a transmissão narrativa de acontecimentos e histórias
passadas. Assim, traditio é tanto o mestre que ensina ou
transmite um ensinamento como o traidor que entrega (algo
ou alguém) ao inimigo.
Por sua vez, o termo moderno foi inicialmente entendido nos primeiros
tempos da história como um movimento de retorno a uma conduta
reta, justa e equilibrada, graças à aplicação
de medidas adequadas, ao estabelecimento da saúde física,
da conduta moral e do equilíbrio das formas. Posteriormente,
na Renascença, o termo passa a ter um sentido semelhante
ao de época, funcionando como um acto inicial de fundação,
destinado a restabelecer a objectividade da experiência,
mas também a justa medida das coisas, dos juízos,
dos equilíbrios. É assim, que o termo moderno se
apresenta como rotura em relação à Idade
Média e em contraposição à Idade Antiga,
como designações parcelares de tempo.
Apesar de estarem presentes como interfaces de
um mesmo fenómeno, a tradição mantém
em relação à modernidade algumas características
que a tornam específica. Inicialmente, tradição
não significa simplesmente a transmissão de saberes
ou conhecimentos de uma pessoa a outra, de uma situação
a outra. A transmissão a que a tradição está
irremediavelmente ligada é uma experiência simbólica
originária e arquetípica que se estabelece através
de uma memória longa que é naturalizada pelo hábito
e pelo costume passado de geração a geração.
A cada vez que a tradição é ritualísticamente
lembrada através do carácter sagrado da festa é,
ao mesmo tempo, esquecida pela experiência profana para
que possa ser interiorizada como um saber inato, que lá
esteve antes, que está agora e que estará amanhã.
A tradição é sempre uma experiência
totalizante, cujo tempo parte de uma natureza mítica sagrada,
feita de retornos cíclicos e reminiscências que dão
existência tanto às realidades sociais como aos fenômenos
naturais, resultado de uma sabedoria coloquial. Assim, não
existe, para a tradição, distinção
entre a ordem natural, o domínio da linguagem e o mundo
da cultura porque a perspectivação do mundo é
completa, feita de uma vez por todas, e para sempre como justificação
da experiência cultural. Daí a ideia comum de que
a tradição está ligada a um ciclo que se
repete e que se alimenta do instante em que se expressa integralmente.
Mas, ao contrário da visão museológica que
pensa a tradição como algo imutável, parado
no tempo e no espaço, a visão hermenêutica
adoptada neste texto permite pensar a tradição como
uma experiência dinâmica e aberta, cujos conteúdos
são mantidos e renovados a cada vez que é transmitida
num tempo muito lento que é dado pela interiorização
de suas regras de manifestação e de habituação.
Portanto, a tradição é
um tipo de experiência cujo discurso é predominantemente
narrativo porque é sempre capaz de ser contado e recontado
inúmeras vezes, sem perder nunca o seu fio condutor, a
sua dimensão originária de onde partiu e para onde
voltará, mesmo que seja interpretado e reinterpretado quantas
vezes foram necessárias por quem o ouvir. «a narrativa
é feita de tempos que se encadeiam e apóiam-se uns
sobre os outros. Uma temporalidade autónoma tende assim
a constituir-se. Ela institui um tempo que não depende
de nós e com relação ao qual devemos aprender
a situar-nos. Ela tende a atribuir-se o seu próprio fundamento
em origens que a amarram em um solo ou a suspendem a um céu.
Ela inscreve um arquivo na memória dos viventes. (Mouillaud
1997 : 76-77)
Por isso, a tradição faz parte de uma memória
longa que é eminiscência, pois só volta por
meio de vestígios sempre iguais e diferentes, ao mesmo
tempo, já que este retorno depende da capacidade de apreensão
de cada um. A memória aqui tem um papel fundamental pelo
sentido que dá à experiência humana, permitindo
não só a transmissão dos conhecimentos passados,
mas a integração desses acontecimentos num todo
coerente, através de um saber prático em que cada
participante se reconhece como parte de uma cadeia comunicativa,
baseada na intersubjetividade simbólica.
Desta forma, a tradição é
uma experiência que é sempre vivida individualmente,
embora possa ser percebida colectivamente e só assim aceita
integralmente. É também uma transmissão que
se dá completamente, de uma vez por todas porque está
vinculada a um sentido que está sempre em movimento, em
acção, em direcção a um horizonte
de sentidos (sentimentos), na forma como o entende Gadamar. De
facto, para este filósofo, o horizonte de sentidos é
um horizonte que está sempre aberto, mas que também
está sempre em fuga, isto é, quanto mais nos aproximamos
do sentido mais ele nos escapa porque cada vez mais exige a nossa
capacidade de apreensão, representação, interiorização,
habituação e compreensão não, por
acaso, as mesmas etapas do processo hermenêutico da comunicação.
Nesta perspectiva, a tradição está directamente
ligada à ideia de pertencimento, de enraizamento a um universo
simbólico de onde retira a sua legitimidade. De facto,
Segundo Chevallier e Gheerbrant, o símbolo é um
dos factores mais poderosos de inserção na realidade
graças à sua função socializante.
Cria uma comunicação profunda com o meio social.
Cada grupo, cada época tem os seus símbolos; vibrar
com eles é participar nesse grupo e nessa época.»
(Chevalier & Gheerbrant 1982 : 22-23) Porém, a realidade
que o símbolo exprime não é a mesma que representa
na sua aparência social. É qualquer coisa indefinida,
mas profundamente sentida como a presença duma energia
física e psíquica que fecunda, cria e alimenta.
O indivíduo sente-se fazendo parte dum conjunto que o assusta,
tranquiliza e lhe ensina a viver. O espectador participa da natureza
do símbolo que responde a essa participação
numa espécie de simbiose imaginária. Tanto a identificação
quanto a participação eliminam as fronteiras das
aparências e conduzem a uma experiência comum, a união
indissociável entre o homem e objeto. É por isso
que a percepção do símbolo exclui a atitude
do simples espectador e exige a participação do
actor.
Neste sentido, é pela experiência tradicional que
o indivíduo cria referências em relação
a si mesmo, em relação ao mundo, em relação
aos outros; que explica e justifica subjectiva e objectivamente
as situações quotidianas e transcendentais (sonhos,
fantasias, alucinações); que define e enquadra os
papéis sociais e os actores respectivos de cada um e que,
enfim, estabelece as identidades individual e colectiva em cada
tempo e lugar. «Concebido como a matriz de todos os significados
socialmente objectivados e subjectivamente reais, o universo simbólico
possui um carácter nômico ou ordenador da realidade,
integrando as experiências pertencentes às diferentes
esferas num todo coerente.» (Berger & Luckman l985 :
131-l42)
Sendo assim, nós só percebemos
quem somos ou que estamos num determinado tempo e lugar quando
sentimo-nos parte desta situação; quando imperceptivelmente
ou quase inconscientemente, damo-nos conta de que, afinal, estamos
em segurança. Este sentimento de segurança, por
sua vez, facilita-nos a abertura aos Outros, dá-nos a capacidade
de gerir os conflitos, as tensões e as contradições
que temos de resolver no dia-a-dia. Partimos sempre para o mundo
tendo como base um quadro de referência comum por onde fundamentamos
o nosso comportamento e tentamos compreender o comportamento dos
outros.
É, por isso, que não podemos fugir da tradição
porque é ela que estabelece o fio da nossa história
individual e da nossa memória colectiva. Podemos até
contradizê-la, negá-la ou aceitá-la tal como
se apresenta, mas não podemos fugir dela, sob pena de ficarmos
sem chão, sem quadros de referências, sem mundo.
Tal como a realidade que nos antecede, nos acompanha a vida toda
e permanece depois de nós, a tradição sedimenta
os saberes por onde esta realidade evolui e o máximo que
podemos fazer é evoluir junto com ela, aperfeiçoando-a
ou criticando-a para que se ajuste ao nosso mundo. Enfim, é
tudo isso que nos permite pensar a tradição como
uma experiência religiosa porque somente ela aparece-se-nos
como uma experiência totalizante e misteriosa, que nos acalma
quando estamos perdidos; que nos referencia quando precisamos
encontrar um norte para a nossa vida; que nos dá tranquilidade
e equilíbrio para seguirmos em frente perante a vida e
a morte.
Por outro lado, a modernidade é sempre
uma experiência parcelar, racionalizada que se apresenta
a nós como um conhecimento lógico com início,
meio e fim. Em vez do tempo e do espaço circulares que
perfomatizam a experiência tradicional, o tempo da modernidade
é fragmentário e atravessado pelas contagem das
horas, enquanto o espaço se resume a limites visíveis
e calculados por um território concreto.
Em vez do discurso narrativo da tradição,
a modernidade opta pelo discurso explicativo, informativo que
reduz a capacidade de interpretação de quem o diz
e a competência criativa de quem o recebe porque nele tudo
está dado, inclusive os significados que o acompanham como
uma sombra. Nesta perspectiva, a ideia de pertencimento é
fragilizada pelos deslocamentos que os indivíduos são
obrigados a fazer em função dos papéis que
assumem no dia-a-dia, sendo a cada vez um personagem diferente,
uma espécie de cidadão do mundo às avessas.
Na experiência moderna, a memória é linear,
contínua e cumulativa, resultado de experimentações
(perfomances) transitórias e multifacetadas por várias
narrativas de naturezas opostas.
A experiência que caracteriza a modernidade é, por
isso, uma experiência parcelar, errática, fluída
e rizomática, incompleta em seus significados e vazia em
seus sentidos porque em vez de resultar numa estética sensível,
acaba por resultar numa estética perfomática, ou
melhor, numa esteticização da experiência,
apenas pautada pelo momento, pelos agoras do tempo presente. Aliás,
o tempo da experiência moderna é sempre o presente,
sem qualquer vinculação com o passado e o futuro,
já que tudo se esgota no momento mesmo em que é
encenado e explicado, sendo logo substituído por outra
experiência que está à caminho. Daí
que a modernidade precisa e, muito, da tradição
para existir porque somente quando as duas interagem é
que é possível perceber a totalidade de um fenómeno
cultural.
Sendo assim, o que define a modernidade em relação
à tradição é, antes de tudo, um ideal
de rotura para com as visões míticas e religiosas
do mundo, numa tentativa de fundamentar a experiência do
mundo, da vida social e da cultura, através da razão,
do agir individual autônomo e da liberdade. É por
isso que se pode reconhecer tanto ou mais modernidade em determinadas
manifestações do passado do que em muitos fenómenos
recentes e que, nos estilos e modos de vida actuais, transparecem
por vezes representações do mundo mais tradicionais
do que em alguns estilos de vida do passado.
Portanto, a mentalidade tradicional não
consiste num mero retorno de estilos e de comportamentos; e o
próprio gosto pelo antigo pode, aliás, apresentar-se
como uma das marcas originais da modernidade. Isto acontece porque
o mundo sacralizado e cindido da tradição permanece
como uma das fontes de sentido (arkhé, a origem autêntica,o
fundamento do sentido) da experiência contemporânea
ao lado do mundo dessacralizado e profano da modernidade. Assim,
moderno é tudo o que se demarca em relação
àquilo que permanece tradicional, tal como o tradicional
é tudo o que se demarca em relação àquilo
que se apresenta como moderno. O que está, por conseguinte,
na base da dialética entre um termo e outro é uma
experiência transitória, uma troca criativa de formas
em que a tradição atualiza a sua arckhé na
modernidade como um estoque de lembranças, um arquivo de
reminiscências, enquanto a modernidade fundamenta e legitima
a sua dinâmica na tradição, como decorrência
da natureza simbólica e multifacetada de qualquer fenômeno
cultural.
O que torna permanente essa troca é, portanto,
um fundo arcaico, isto é, um princípio mítico
constitutivo dos conhecimentos religiosos, sociais e culturais
pré-modernos e que volta sempre que é solicitado
pela contemporaneidade para compor novos reflexos e efeitos de
sentido que, depois, são lançados no quotidiano
efêmero da experiência coletiva para compor um conjunto
de estratos subterrâneos, resultado de um imaginário
primitivo constante. Do que é possível vivenciar
como positivo, do que é possível esconder sob as
cinzas, pela sua negatividade, e do que é possível
neutralizar como experiência.
3- A natureza quiasmática da Festa
É na festa que a tradição e a modernidade,
enquanto dimensões da experiência se fundem e se
confundem dialogicamente porque é no ritual de celebração
que estes termos se expressam com toda a sua força. Primeiro,
porque a festa é sempre uma experiência mediadora
e ritualística entre o real e o transcendente, entre o
sagrado e o profano, entre a superfície e a profundidade
da vida quotidiana. Segundo, porque a festa é um tempo
e um espaço reservados à plena expressão
dos sentimentos (sentidos) humanos sendo, por isso, um fenómeno
indissociável do processo de pertenciamento do indivíduo
a uma dada colectividade. E, terceiro, porque a festa permite
o nosso reencontro com os Outros, num processo de partilha e de
comunhão (comunicação) que é único
e singular a cada vez que acontece porque é sempre totalizante
e completa enquanto vigora.
É a festa que sacraliza o processo social
porque a participação neste tipo de evento é
completa e incondicional, o que resulta na sua força singular
já que, em qualquer circunstância, reforça
os laços sociais mesmo quando a celebração
é efémera e os resultados negativos. Por isso, o
ditado popular que diz: o melhor da festa é esperar por
ela reflecte a lógica circular que a caracteriza é
uma lógica circular que é sempre encantatória,
dinâmica e mágica porque supõe a espera, a
preparação e, posteriormente a lembrança
como uma recordação teleológica que é
sempre um vir-a-ser.
Por isso, a festa-evento precisa acontecer com todas as suas fases
para que a sua lembrança possa servir de vestígio
para a festa-retorno que se anuncia no momento mesmo do encerramento
do evento anterior, num ciclo interminável de vida e de
morte. Assim, cumprir com este ritual é cumprir uma promessa,
cujas regras é a adequação de um comportamento
a princípios, determinações ou normas adequadas
para o seu desempenho. Não cumpri-la adquire o sentido
de contestação, de revolta e de oposição
qualquer que seja o motivo, mas sobretudo, quando o motivo já
traz implícito seu perdão libertador decorrente
de uma necessidade transcendente e sagrada. A celebração
da festa e a sua conclusão significa o triunfo da vida
sobre a morte, a redução da incerteza e a posse
de novo equilíbrio.
Mais do que em qualquer outro momento, é
na celebração que o carácter profano se junta
ao sagrado numa dialéctica que celebra os dois pólos
contrários primordiais à existência. O fim
da celebração indica o que desaparece na inelutável
evolução das coisas, representa o aspecto perecível
e destruidor da existência, mas significa também
a revelação e a introdução - ritos
de passagem para uma nova fase, deixando claro a coexistência
de forças contrárias. O fim da celebração
é a transposição para um nível mais
elevado e superior; mudança inevitável, mas é
também uma iniciação; libertação
dos sacrifícios e preocupações. «O
profano deve morrer para renascer para a vida superior conferida
pela iniciação. Se não morrer para o seu
estado de imperfeição, impede a si próprio
todo o progresso iniciático.» (Chevalier & Gheerbrant
l982 : 460-46l)
É, ao mesmo tempo, sacríficio pela
responsabilidade que o acto de celebração comporta
com todos os seus custos (perdas e ganhos), mas é também
catarse pela energia fundamental que explode e esgota o ser que
participa nela. É rotura e prolongamento; é desejo
e traição; é alegria e excesso; é
dia e é noite. É, portanto, um fenómeno ligado
desde sempre ao mito da deusa Deméter, deusa da fertilidade,
da terra-mãe, cujo culto remonta a mais alta Antiguidade.
Ocupa o centro dos mistérios iniciáticos de Elêusis
que celebram o eterno retorno, o ciclo das mortes e dos renascimentos,
no sentido de uma espiritualização progressiva da
matéria. Deméter é, assim, a deusa das alternâncias
entre a morte e a vida, da terra cultivada, do ciclo vegetativo,
da passagem da natureza à cultura, do selvagem ao civilizado.
Há na irrupção da festa
«os instantes de paroxismo, com suas permissões múltiplas
(refeições mais abundantes, vestuários novos,
aproximações sexuais), com seus exageros fecundos,
suas inversões de papéis e de status, a reinstalarem
no seio da identidade redutora da cotidianidade, o caos primordial
regenerador que, neste sentido, representaria não o princípio
da desordem (como dá a entender a acepção
ordinária do termo caos), mas o princípio da heterogeneidade
concebida pela termodinâmica como a ordem inicial, e por
conseguinte, como fenómeno de vida.» (Prado l977
: 2l7).
Na festa, o tempo presente se confunde com o passado porque recorda-o
para projectá-lo para o futuro, tornando-o suportável
diante da dimensão trágica da vida quotidiana. «Graças
à festa, o passado, embora irrepetível e, neste
sentido, para sempre perdido, retorna de algum modo ao presente,
por ocasião da celebração festiva da memória,
entendida como reminiscência despoletada pela identificação
e pelo reconhecimento colectivo de suas marcas.» (Rodrigues
2004 : 3) Deste ponto de vista, segundo o autor, a festa é,
ao mesmo tempo, celebração do enigma da existência
e processo destinado a torná-lo suportável ou pelo
menos aceitável, graças a um processo que podemos
considerar como a sua esconjuração simbólica.
É, portanto, uma celebração
a-temporal e an-espacial porque se desloca no tempo moldando-o
com a sua retórica e, no espaço que se transforma
num território simbólico. O tempo, neste presente
contínuo, é sazonal, reversível, mítico,
primordial, marcado pelo ciclo e enraizamento, cujo fundamento
é o retorno de situações e actos que a memória
grupal reforça atribuindo-lhes valor. Um tempo sempre igual
a si mesmo, que consagra o instante, o preciso instante que reitera
o passado no presente com um olho no futuro; que volta todos os
anos, através de um ritual de expectativa e precisão,
garantindo a memória de cada um, ou seja, o mesmo conjunto
de significados que os re-atualiza, e onde todos estão
presentificados e activos.
Deste modo, se com a memória explora-se
a dimensão temporal do homem, com a pertença está
em cena o conteúdo espacial da existência. O espaço
sagrado, neste caso, é o real, o que existe como fundação
do mundo e que constitui rotura na homogeneidade do espaço
comum, permitindo a cada um re-conhecer-se como igual, a partir
do re-conhecimento do outro, dentro da vida grupal, de uma vivência
colectiva que é preenchida no decorrer da produção
sacralizada, envolvendo fortes laços de solidariedade e
identidade. Este espaço funciona como suporte de comunicação,
inter-relação, organização de sentidos
e fecundidade do universo simbólico que se faz e se refaz
a cada caminhada, mas funciona também como centro do universo,
onde é possível formar uma nova rede de relações
sociais, voltada para o afectivo e o religioso. É nesse
espaço, portanto, que a comunicação deixa
de ser pura informação, para ser o ponto de interacção
e intersecção entre cada um dos participantes, num
processo constante de retroalimentação de palavras,
sentimentos, acções e reacções.
Mas, como a festa trabalha com dois tempos e
com dois espaços é importante destacar que na sua
dinâmica de atualização, o tempo é
também percebido como profano e determinado pelo desenvolvimento
das suas actividades produtivas que não tem um começo
místico, mas que depende do motivo da celebração,
dos recursos financeiros e da vontade do grupo. É o tempo
do preparo das fases de celebração, das alianças
que precisam ser feitas para que tudo ocorra conforme a programação,
da distribuição dos papéis sociais e das
responsabilidades de cada um, da construção de uma
imagem e de uma identidade. Nessas alianças é que
a festa promove sua reactualização cultural, transforma-se,
moderniza-se, num processo que tem por base uma triagem natural
dos elementos que compõem o seu conjunto.
Da mesma forma, o espaço funciona como
um local de reposições da festa que não é
mais somente ritual, mas é também evento, cujo tempo
além de profano é cronometrado, regulamentado e
cobrado, deixando à mostra o carácter empresarial
que permeia o jogo de produção e difusão
da festa, no qual as relações profissionais e empregatícias
ocorrem. O certo é que não se pode entrar e sair
imune desse espaço, de mãos vazias, passar imune
pela experiência, pois o engajamento leva à penetração
num universo simbólico, rico de produção
de significados, que não só tornam a festa um espaço
concreto de relações como estabelecem articulações
entre este fenómeno e a sociedade mais ampla. A festa é
como uma empresa de construção do mundo, como uma
actividade de ordenação totalizante, um nomos, cujos
princípios são considerados não somente como
úteis, desejáveis ou justos pelos participantes,
mas igualmente inevitáveis, aspecto ou parte da natureza
universal das coisas. Há uma visão cíclica
da natureza, uma reversibilidade e flexibilidade que se produz
e reproduz como parte do mundo sagrado.
Neste sentido, a festa é pura prática
partilhada num espaço em que cada acção tem
sua razão de ser, mesmo que aparentemente não possua
uma lógica. A festa é o instante esperado, o lugar
de fala, que possui como características a coesão
interna, onde cada hábito ou crença tem sua significação;
a vivência, não consciente, mas emotiva, intencional
e teleológica; a reelaboração constante em
que tudo é refeito e nem tudo é herdado e a perspectiva
psicológica, em que a espontaneidade e a motivação
funcionam, não como vestígios de sobrevivência,
mas como forças motrizes de uma natureza única,
singular. Portanto, parte de uma bildung, isto é, de uma
formação moral, cultural e estética do homem.
A festa no cotidiano representa um evento sagrado
sendo utilizada pela comunidade para designar os encontros sociais,
independente da forma assumida ou do conteúdo manifestado.
Constitui um tempo regido por normas diferentes das que regem
o tempo comum. Um tempo dilatado para o surgimento do novo e do
desconhecido, através da transcendentalização
da rotina, do relaxamento das regras sociais e do perigo de quebra
e desintegração. Daí os sentimentos de alegria
e apreensão, que representam tanto uma ocasião para
o afrouxamento das fronteiras como para o aparecimento da tensão,
decorrentes da situação festiva.
Em conclusão, a festa agrega duas características
fundantes. Por um lado, a festa faz parte de uma cultura para
ser , regida por rituais que transpõem o espaço,
por etapas e fases que lhe dão substância narrativa
e um lugar no social, vivida como costume na construção
de um mundo vivido e de uma memória colectiva, a modernidade
aparece como pressuposto básico de uma cultura para ter,
parte de uma dimensão imediata Kultur, exteriorizante e
dirigida e, da necessidade de atualizar a mensagem transmitida
anualmente.
Assim, designar-se tradicional num momento e moderna num outro
faz parte da natureza plural e universal da festa porque reforça
a sua identidade, possibilitando a sua sobrevivência diante
dos demais fenómenos culturais, estimulando a concorrência,
e repondo a cada momento os vários papéis e actuações
que a festa representa/apresenta nos espaços público/privado.
Por isso, ser tradicional e moderno ao mesmo tempo não
desvincula a festa de sua história, de suas perspectivas
culturais, mas a enquadra num contexto próprio e numa dinâmica
que reforça a sua singularidade.
A tradição, ou seja, o estoque
cultural cujos elementos do passado agem sobre o inconsciente
e o imaginário sociais intervindo na modelagem do presente,
actualiza-se, incorpora-se às demais esferas culturais,
num processo de recuperação permanente da arché,
enquanto a modernidade intercambia o sistema simbólico
da festa com o mundo profano, transformando-a em produto, espectáculo,
mercadoria, ampliando o seu carácter plural com objectivos
empresariais, lucros e responsabilidades junto aos diversos sectores
sociais na formação simultânea de uma imagem
e de uma identidade.
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