ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA - Estórias da Nossa História


Sempre achei que um pequeno incidente, um factozeco, uma historieta e mesmo uma anedota com significado, não só não eram descabidos nas grandes análises como até conseguem ser iluminadores. (Podem é, evidentemente, prejudicar o suposto aspecto "sério" duma obra, como se, no real, tudo fosse sisudez e chateza, mas isso é outra história.) A que se segue, até nem é bem o caso. Julgada por qualquer padrão, é séria de mais para que deixe de figurar mesmo nos textos maçudos e compenetrados de qualquer sociologia ou história da cultura portuguesa.

Foi durante o simpósio sobre José Rodrigues Miguéis na Brown University. No carro, pela 195 fora em direcção a já não sei onde, Eduardo Lourenço falava (poucos dos intelectuais portugueses quando falam dirão tanto como ele. Que fala, aliás, sem "tenho dito"!). Miguéis era o tema. O seu exílio. O seu esquecimento na mãe-pátria. De repente, Lourenço volta-se para traz para a Annie. Abrupto e de olhos vibrantes com um eureka! no cérebro:

"Já sei! Já sei! Miguéis foi posto de lado quando começou a trabalhar nas Selecções do Reader's Digest. Foi! Foi isso! Em Portugal isso foi tomado como um gesto mais do que suspeito. Era uma viragem ideológica de Miguéis. Sinal de que se pusera ao serviço do estabelecimento americano. E daí o silêncio sobre ele. A geração seguinte criou-se sem lhe ouvir uma referência entre os nomes citados pela crítica que contava, e ele ficou sumido".

(Que Eduardo Lourenço perdoe lá a citação, que é de memória e a mês e meio do acontecimento, mas o conteúdo não me parece longe do que aí vai.)

Miguéis, antifascista e antifranquista quase utópico nos seus primeiros seis anos de América, na luta pela sua própria sobrevivência, agarra-se ao único pau (ou pão) de salvação que possuía como escritor português imigrado - a língua. A não ser que fosse lavar janelas de arranha-céus, como a sua "gente da terceira classe '. (Naquela altura - Segunda Guerra Mundial, recorde-se! a outra alternativa bem poderia ter sido o Pentágono!...)

Em Portugal, a incapacidade de se perceber e reconhecer os problemas da diáspora (pobre Jorge de Sena, que tanto malhou em vão no teclado da máquina!), o simplismo das leituras dicotómicas e maniqueístas (do lado da América tudo joga na mesma equipa!) foram incapazes de imaginar Miguéis a lutar pela vida a traduzir, no seu português tão genuíno, inglês para o Brasil. Tão justificável como os empregos que intelectuais e escritores de esquerda conseguiam nas agências de publicidade lisboetas. Tão colaboracionista com o capitalismo era uma posição como a outra. A única diferença está no facto de Miguéis ter lá ficado muitíssimo pouco tempo. E, para maior ironia no caso, foi mesmo afastado supostamente devido às suas ligações esquerdistas. (Estava-se em período pré-McCarthy, note-se.) Há ainda muito de escuro na série de acontecimentos que enchem esse dossier cerrado na memória de Camila Miguéis, mas esse pouco parece mais do que verdade histórica. (O papel de Afrânio Coutinho faz parte dos documentos reservados.)

Comunista na América e capitalista em Portugal, americano em Lisboa e português em Nova Iorque. Sina antiga já a da diáspora. Albuquerque, também lá longe, sentiu a tragédia desse ser-se visto só das alturas baixinhas da Torre de Belém. "Mal com os homens por amor d'el-rei..." Mas, de novo aqui, outra diferença. Para Miguéis o bom era continuar.

E foi mesmo.

1981

pp. 156-158