URBANO BETTENCOURT:
Fernando Álvares Evangelho e o Cão da Escrita


No filme de Robert Zemeckis Cast Away - O Náufrago, em português - há um momento em que Chuck Noland, o protagonista (sobrevivente de um acidente aéreo sobre o Pacífico e atirado para uma ilha de que se torna o único habitante), olha para as manchas de sangue por ele próprio deixadas numa bola de vólei e consegue ler nelas os traços que, de modo grosseiro, configuram um rosto humano. Depois disso, a bola (ou o rosto) receberá o nome de baptismo de Wilson e tornar-se-á o interlocutor, melhor dizendo, o confidente do protagonista nesse demorado processo de luta pela sobrevivência física e psicológica e de procura de caminhos que lhe permitam o regresso à civilização.
É certo que a história de Chuck Noland, engenheiro e funcionário de uma empresa norte-americana e encarregado de "acudir" aos problemas da sua área profissional nos mais diferentes pontos do planeta, não deixa de ostentar como forte componente ideológica um optimismo hoje historicamente datado, de quando ninguém ousaria sequer admitir como hipótese que a globalização, enquanto expressão eufemística da dominação tecnológica e da livre circulação de um capitalismo desenfreado, pudesse por arrastamento conduzir também à pura irracionalidade do terror global, como o 11 de Setembro veio demonstrar de forma tão brutalmente eficaz. Mas nesta transposição de Robinson Crusoé para os tempos modernos (subsidiária talvez da vaga ecológica e de algum impropriamente chamado "reality show" televisivo) o que se detecta ainda é o rasto do lugar que as ilhas têm ocupado no pensamento mítico ocidental, desde as mediterrânicas que pontuam o percurso errático de Ulisses até àquelas com que o imaginário medieval pretendeu povoar o Atlântico, adensando o seu mistério e segredos quando, pelo contrário, julgava esclarecê-los. E projecta-se do mesmo modo essa outra imagem cultural e literária, marcada por uma forte nostalgia das origens, que vê na ilha o reduto último da humanidade, o espaço onde se poderá reviver ilusoriamente o tempo fabuloso dos começos; enquanto modelo reduzido de um mundo de que é, ao mesmo tempo, a imagem afastada e diferente, a ilha tem-se constituído, de facto, uma espécie de espaço experimental em que o homem pode ser posto à prova nas suas capacidades e limitações, em situações de isolamento que, simultaneamente, propiciam o contacto perdido com a Natureza e simulam o regresso a um mundo primordial anterior à história e aos seus traumas (ou então, em sentido inverso, concretizam o modelo ideal de realização histórica, como acontece em A Utopia, de Thomas More).
Ora, de Robinson Crusoé a Chuck Noland, o que as diferentes modalidades narrativas põem em evidência é a necessidade imperiosa da presença do outro como factor de comunicação e diálogo: chame-se ele Sexta-Feira ou Wilson, em qualquer dos casos se afirma que a sobrevivência do homem é também resultante da sua capacidade de projectar-se para além de si através da actividade simbólica em que a linguagem se inscreve. Actividade duplamente simbólica, aliás, no caso de Noland, pelo expediente a que lança mão para vencer a solidão e o isolamento, termos que consubstanciam, afinal, a expressão da experiência humana em ilhas: "tomo aqui a palavra "isolamento" no seu sentido etimológico: solidão de ilha. Um homem numa rocha e em volta o mar" - escreveu Vitorino Nemésio , um escritor que neste ano de centenário do nascimento deveria merecer por parte do Pico e das suas instituições culturais e educativas um pouco de atenção e, ao menos, um aceno de evocação, pelo lugar que lhe cabe como escritor maior da Língua Portuguesa e, mais particularmente, pelo modo afectuoso como o Pico e os picarotos ficaram para sempre registados na sua obra, desde O Açoriano e os Açores (1928) até Sapateia Açoriana (1976), passando por Mau Tempo no Canal (1944) e por Corsário das Ilhas (1956).

A necessidade desse outro que assinala a fronteira do silêncio e do isolamento, já a deixara expressa Frei Diogo das Chagas no seu Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores, num fragmento que constitui a proto-narrativa do Pico, texto fundador da história humana da Ilha e por isso das Lajes também:

"O primeiro homem, que se pratica por certo auer entrado nesta Ilha pera a pouoar foi hum Fernando Áluerez Euangelho, o qual uindo a buscar a tomou polla parte do Sul, e uindo no barco busca la costa (sic) saltou em terra aonde se diz o penedo negro, e com elle hum cão que trazia, e o mar se leuantou de modo que não deu lugar a ninguem mais saltar em terra, e aquella noite se leuantou uento, do modo, que a carauella ao outro dia não appareceo, e elle se ficou na Ilha com o seu Companheiro o Cão; e nella esteue hum anno sostentando se das carnes dos porcos, e outros gados brabos, que com o cão tomaua (que como o Infante quando as descobrio em todas mandou botar gados, auia nellas, quando depois se pouoarão muita multiplicação delles). No cabo do anno tornarão os Companheiros a buscar a Ilha polla mesma parte, e uindo com milhor maré, e como elle já estaua pratico na Costa emcaminhou os pera o porto, aonde agora he a freguezia das ribeiras em que saltarão, e se festejarão como conuinha tratando de sua pouoação logo por esta parte, sen (sic)"

Nesse ponto difuso em que o facto histórico se cruza com a lenda, o discurso do cronista convoca em seu auxílio os ingredientes necessários à mitificação do herói-fundador, à construção de um ambiente de obstáculos e aventura, de desafio à capacidade humana e, finalmente, a afirmação de um triunfo que é também a expressão da pertença a um novo território e do início de uma outra história. Alguns desses elementos efabulatórios, enquadráveis nalguma ficção narrativa do século XVII, não escaparam a Lacerda Machado que assinalava a função de intensificação dramática desempenhada pela referência ao tempo (um ano) passado por Fernando Álvares Evangelho sozinho na Ilha . A mim, interessa-me sobretudo a presença desse cão a que poderia caber o simples papel de caçador ao serviço do desbravador de espaços e segredos, mas que o cronista preferiu designar por "companheiro", num registo mais afectuoso, mais humano também: aí estará, creio eu, o outro de que Fernando Álvares Evangelho precisou para enfrentar os mistérios da Ilha e os anjos perversos da solidão (e, convenhamos, um cão será sempre um interlocutor muito mais afectuoso do que uma bola de vólei).
Se nesta deriva recuei até ao texto do século XVII, fi-lo também por me parecer que a imagem de um homem com o seu cão sobre o espaço intocado de uma ilha traduz a realidade mais profunda daquilo que constitui o objecto da tarefa que me foi proposta: a escrita e os escritores de algum modo vinculados ao espaço geográfico, cultural do Concelho das Lajes. No modo como cada escritor enfrenta o mundo e o organiza verbalmente, há, na verdade, qualquer coisa de momento originário, de desafio e aventura, de afrontamento do incerto, em que o deslumbramento da criação e do novo não chega para anular o sentimento de solidão e desamparo: em cada acto de escrever há um Fernando Álvares Evangelho isolado do mundo, abandonado pelos outros sobre uma ilha desconhecida e na única companhia do cão da escrita - desse lugar nos fala ele de ilhas que são mundos e de continentes que são ilhas, umas e outros presentes na ilha em que cada texto se torna e sobre a qual nós, leitores, nos afastamos voluntariamente do mundo para o podermos descobrir nas palavras que no-lo dizem e revelam. Por isso, falar de escritores, e particularmente neste caso concreto, é tentar detectar o modo como cada um deles estabeleceu a sua relação com a escrita e nesse acto de dizer-se acabou por inscrever na sua fala o registo do seu olhar sobre si e sobre o mundo.
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Essa voz que na escrita se constrói como forma de romper o silêncio é o que nos revela o poema inaugural do Livro da Alma, de Bernardo Maciel (S. João, 1874-1917). Dotado de uma função programática e explicativa habitualmente atribuída ao paratexto prefacial, esse poema, do qual o livro recebe o título, torna evidente a íntima relação entre texto e vida, num continuado jogo metafórico que estabelece a analogia entre esses dois pólos, ou seja, a obra como projecção concreta (ainda que transfigurada) do universo dos afectos e vivências. Ao mesmo tempo, acentuando a natureza de um diálogo íntimo e exclusivo entre autor e texto, o poema acaba por fornecer ao leitor uma concepção do poeta como "eleito", o único capaz de aceder ao conhecimento das coisas para lá das suas evidências de superfície - concepção que interessa sobremaneira para situar Bernardo Maciel no devido contexto literário.
Pesa sobre a obra de Bernardo Maciel a força de qualquer mau olhado que impediu que até hoje fossem publicadas os seis livros que em 1916, no Livro da Alma, o autor anunciava como "concluídos e prontos a imprimir", entre eles quatro livros de poemas. Por isso, as minhas anotações não são mais do que o resultado do meu contacto com os textos desse único livro vindo a público e ainda com alguns inéditos (cerca de doze) dados a conhecer em 1938 por Ruy Galvão de Carvalho num artigo em que abordava a obra do poeta picoense.
Há nestes "versos da mocidade" -subtítulo dado por Bernardo Maciel ao seu livro- uma difusa tonalidade romântica que bebe nas fontes populares algumas das suas imagens e representações, num tom de singeleza que faz pensar em Augusto Gil, mas tocado, noutros casos, por um evidente pessimismo de fim-de-século e passando de raspão pela sombra de Antero de Quental ("Só", pp. 43-45):

Árvore nua, dorida,
Morres só, meu coração.
Folhas verdes -esperanças-
Arrancou-as o tufão...

E nos ramos desolados
D'onde cairam as flores,
De um céu d'além mudo e triste
Vêm poisar bandos de dores.

(...)
Porque não te encontra nunca
O meu coração errante,
Ó palácio da Ventura
Encantado e distante!

Nos teus jardins, junto aos lagos,
À luz do entardecer,
Queria amar e sonhar....
Sonhar sempre até morrer...

E do mesmo modo que nos deparamos com pequenos e realistas quadros rústicos ("No Mato", por exemplo), também detectamos já os sinais de um simbolismo ainda incipiente, mas que dá mostras de grande maturidade nos poemas revelados por Ruy Galvão de Carvalho e que, a confirmar-se como a dominante estética de Bernardo Maciel, fará do poeta o elo que faltava para fechar o arco simbolista que vai de Roberto de Mesquita, nas Flores, até Humberto de Bettencourt e Duarte Bruno, em S. Miguel.

Poeta de um livro só e que a Filosofia viria a monopolizar em definitivo, José Enes (Silveira, 1924) reuniu em Água do céu e do mar (1960) uma colectânea de poemas escritos entre 1946 e 1960, distribuídos por duas secções que correspondem a dois grandes núcleos temáticos, indiciados até pelos respectivos títulos: "Incomparável amor" e "Sempre o mar e a mesma terra".
Na primeira delas, o discurso poético constitui-se o registo de uma voz inquieta que se interroga e questiona a sua relação, talvez antes, a sua resposta a um apelo divino; voz dramática num diálogo com o Outro/Deus em que a cada passo o homem reconhece a sua condição humilde de pecador: a poesia torna-se por isso, e não raras vezes, a expressão de um desejo de purificação e ascese, ou então, noutros casos, o testemunho do encontro com Deus através do mundo e das coisas, num tom a que não será alheia uma vaga inspiração franciscana (veja-se "Presença", p. 18-19).
Já na segunda parte, "Sempre o mar e a mesma terra", reduz-se essa ostensiva exposição do sujeito poético, digamos que o "eu" da enunciação apaga consideravelmente a sua presença ao nível do discurso para deixar-nos o registo de uma vivência do espaço-tempo ilhéu que, sem anular a sua vinculação subjectiva, pretende constituir-se, mesmo assim, na sua formulação abstracta e tendencialmente objectiva, a expressão da insularidade açoriana nos seus condicionalismos geo-históricos: tópicos como o tempo suspenso ou a imobilidade física traduzem o modo de apreensão e percepção estéticas da realidade da ilha enquanto espaço bloqueado e bloqueador também dos anseios individuais.
A insatisfação e a consciência dos limites, exprimindo-se em simultâneo com um anseio de libertação que o ilimitado dos horizontes propicia e intensifica (e constituem o sinal de uma forte consciência insular), marcam a última parte do livro de José Enes e enquadram-no perfeitamente nas tendências poéticas dominantes na literatura açoriana dos anos cinquenta, onde é detectável a lição dos modernismos portugueses, filtrados em parte pela óptica do modernismo cabo-verdiano. No caso de José Enes, acresce ainda a adopção de um rigor expressivo de natureza "clássica" que de modo natural convive com os modelos da poesia popular, numa adequação de processos e tom que permite situá-lo com toda a justiça entre a Festa Redonda (1950), de Vitorino Nemésio (descontando-se, é óbvio, a "deturpação prosódica" do terceirense), e Eu fui ao Pico piquei-me (1980) do também poeta terceirense Álamo Oliveira.
A poesia de José Enes é hoje, felizmente, mais conhecida, graças ao poema que por aí circula depois de em oportuna e felicíssima hora ter sido musicado por Emílio Porto - "Montanha do meu destino", um texto não incluído no livro e que me surpreende pela frescura e originalidade com que aí se escreve a marca que a Ilha imprime no mais íntimo de nós como traço indelével; mas não resisto a transcrever aqui algumas quadras das "Cantigas a Nossa Senhora da Guia" que encerram o livro de José Enes e onde manifestamente se revela o modo sábio como o autor aproveita a lição da tradição oral, numa proximidade de tom e de afectividade que não esconde, em qualquer caso, o trabalho de re-elaboração autoral na busca de uma imagética original e particular:

Nossa Senhora da Guia,
a quem menino rezei,
Vossos olhos são as uvas
da videira que plantei.
(...)
Nossa Senhora da Guia,
que gostais de vinho mosto,
quero dar-Vos a alegria
de viver a Vosso gosto.

Nossa Senhora da Guia,
lisinha como os calhaus,
o Vosso manto é mais fino
que as penas dos garajaus.

Expressão poética de uma relação do homem com Deus, em pública afirmação de um compromisso aceite em resposta a um chamamento divino, é o que igualmente encontramos em Salmos da minha Saudade, do P.e J. Pereira da Silva (S. João, 1892-1974), e em Hora de Tércia, de José Carlos, nome literário do Pe. José Carlos Vieira Simplício (Almagreira, 1937), embora diferentes pressupostos e circunstâncias enformem os dois livros, publicados ambos em 1965.
No caso de J. Pereira da Silva, trata-se de uma intromissão única no campo da poesia, a pretexto da celebração de meio século de sacerdócio, o que ajuda a compreender, por um lado, o tom celebrativo e a envolvência religiosa, íntima dos seus textos e, por outro lado, a presença indelével do tempo com as marcas deixadas pelo seu curso imparável. A escolha do soneto como género poético exclusivo, com os seus processos formais rigorosos, favorece a solenidade deste canto jubilatório, uma solenidade que não andará afastada das suas reconhecidas qualidades de orador sacro; por aí se situarão também as alusões e as epígrafes de proveniência bíblica, os títulos colhidos no campo religioso, a recuperação de tópicos da cultura hebraica, que constituem os sinais de um lastro de erudição e, mais do que isso, configuram uma visão do mundo moldada pela presença do divino, mesmo até na "construção autobiográfica" como projecção pessoal de situações evangélicas ( veja-se o poema "Paternidade Fraternal", p. 19). E se o livro constitui um canto jubilatório, de acção de graças, acto de partilha também com amigos e familiares, que as dedicatórias tornam mais expressivo, essa presença do divino permite ao poeta evocar o passado, a ilha da infância com uma tranquila nostalgia, mesmo quando nesse olhar retrospectivo se perfilam as sombras e os desgostos acumulados ao longo do caminho percorrido.
Hora de Tércia, de José Carlos, vem na sequência de Murmúrios dos meus quinze anos (1953) e é nitidamente um livro matinal, naquilo mesmo que o próprio título simbolicamente já anuncia através da referência temporal de notação canónica (nove horas da manhã). Aquilo que em J. Pereira da Silva era retrospectiva e balanço, torna-se aqui canto de começo e de promessa: afirmação luminosa de resposta a um chamamento e de entrega a uma missão livremente aceite, como tão bem o exprime o poema "Sim" (p. 17):

Passaste, Senhor...
E o teu olhar
longo e suave
a luz em mim
fez despertar.

Passaste, Senhor,
para dizer
de tanto amor...
Palavra assim
não sei de haver!

Passaste, Senhor,
e eu lá segui
tangendo a harpa
do coração
atrás de Ti.

Mas esta entrega, que supõe sempre a purificação e o despojamento interiores, não impede o poeta de olhar para o mundo exterior nem de fruir esteticamente o espaço e os pequenos momentos e objectos do quotidiano, sejam eles o "caminho da minha aldeia" ou uma ermida abandonada, numa atitude de des-velamento dos seus mistérios e sentidos invisíveis-como ocorre no poema "Momento" (p. 41).
É um livro matinal também na liberdade criativa com que aí se perseguem as formas e os modos expressivos mais adequados à construção de uma voz poética individualizada: da irregularidade métrica, estabelecendo súbitos contrastes de movimentos lentos e bruscos, ao alongamento discursivo associado ao verso livre de pendor descritivo e reflexivo; da diversidade estrófica à adopção de modelos fixos cuja normatividade se atenua e dilui, por vezes, na leveza rítmica do texto (vejam-se, por exemplo, os poemas "Sim" e "Convite"), passando ainda pela procura de repertório de imagens próprias - eis alguns dos traços que em Hora de Tércia assinalam uma nítida intenção estética e a busca da modernidade literária.


Por meados dos anos cinquenta, iniciava Dias de Melo (Calheta de Nesquim, 1925) uma obra que, pela pluralidade de perspectivas e de modos de aproximação, constitui hoje a mais complexa abordagem do universo baleeiro picoense, mais particularmente do que se reporta à Calheta de Nesquim. Estreando-se no campo da poesia com Toadas do Mar e da Terra (1954), Dias de Melo deslocar-se-ia depois para o domínio narrativo com um livro de "crónicas romanceadas", Mar Rubro (1958), em que a vertente testemunhal, informativa era já atravessada por um forte pendor narrativo que se assumiria plenamente em Pedras Negras (1964) e em Mar pela Proa (1976). Com eles começava a erguer-se um universo ficcional que, salvo raras excepções pontuais como, por exemplo, as de Cidade Cinzenta (1971) ou mesmo O Autógrafo (1999), se tem pautado por uma fidelidade ao mundo rural e marítimo picoense, fidelidade detectável não apenas na permanência de uma temática dominante, mas também no modo como o narrador, mesmo quando afastado dos acontecimentos, não deixa de manifestar a sua empatia, mais do que isso, a simpatia para com as personagens socialmente desprotegidas, vítimas da prepotência dos poderes dominantes, da insensibilidade de outros e das forças incontroláveis da natureza insular.
Dentro desta perspectiva, Pedras Negras (que ano após ano continuo a trabalhar com os meus alunos de Literatura Açoriana) constitui uma narrativa nuclear e de síntese na obra de Dias de Melo, pelo modo como configura esse mundo de conflitos vários em que a experiência presente e o medo do futuro antevisto na memória do passado expulsam o homem da ilha, lançando-o em demanda do paraíso americano, que só conhecerá depois de provar o seu inferno: representação da vida no final insular no final do séc. XIX, a baleação e o seu papel desencadeador da imigração para a América do Norte, a aprendizagem do mundo entre a competição feroz, a desumanidade e a solidariedade também, o sucesso material, enfim, proporcionado pelas "califórnias perdidas de abundância" , com um regresso que será a confirmação desse mesmo sucesso e um ajuste de contas final em que a ilha de novo imporá a sua vontade inexorável e destrutiva - tudo isto se polariza na personagem de Francisco Marroco, através de quem se manifesta uma visão trágica da vida insular, ao mesmo tempo que, e numa perspectiva mais abrangente, se congregam em Pedras Negras os grandes elementos da Narrativa Açoriana, os seus fluxos humanos e as representações de um imaginário colectivo, reconhecidamente muito mais voltado para oeste, por razões que a história terá dado a conhecer ao coração ... e ao estômago também.
Dias de Melo, porém, não esgota o assunto na sua ficção literária: retoma-o sob outra perspectiva em Vida vivida em terra de baleeiros (1983): aqui, articulando a evocação com a documentação, a pesquisa e o testemunho, deixa-nos um conjunto de informações valiosas para o historial da baleação no Pico durante cerca de um século, isto é, o período que vai da fundação da primeira armação até à fase de reconhecido declínio e posterior e desaparecimento final da actividade. E acabaria por voltar a ele, inevitavelmente, nessa inestimável obra que é Na Memória das Gentes, em cujos seis volumes um quotidiano picoense ainda não demasiado distante é trazido ao nosso conhecimento pela viva voz dos seus próprios artífices, as gentes do mar e as da terra, compondo um painel riquíssimo de informações e vivências, numa espécie de história emotiva e fragmentária de que o poder político da altura atempadamente reconheceu a importância, ao incumbir o escritor de realizar esse trabalho de recolha e registo e ao proporcionar-lhe condições para levá-lo a cabo. Histórias da baleação, da construção naval também , memórias de um tempo de abandono, de penúrias em terra e perigos no mar, cruzam-se nesta obra que consigna ainda um acervo de matéria etno-antropológica e o registo linguístico de uma fluência oral bem como, no último dos livros, um repertório de narrativas populares, contos e episódios integrantes desse universo de efabulação e mistério que o imaginário popular foi construindo e transmitindo ao longo do tempo.
É também no âmbito desse imaginário e da sua preservação que se enquadra o livro Açores-lendas e outras histórias (2.ª ed., 1999) organizado por Ângela Furtado-Brum (Calheta de Nesquim, 1952), embora com um propósito muito mais abrangente, dado que o registo efectuado se reporta às nove ilhas do arquipélago. São duzentas e quarenta "lendas e outras histórias", vinte e oito delas referentes ao Pico, e que constituem o lastro de uma narrativa oral em vias de desaparecimento, mas parte integrante de um património simbólico, também ele construído pelos séculos fora, embora menos visível que o outro, de pedra e cal. Essas histórias traduzem a necessidade de tudo explicar, de a tudo dar um sentido, desde os nomes de lugares aos templos, aos fenómenos naturais e práticas sociais, e dizem-nos que, afinal, tudo tem uma origem e se liga a uma história cujo sentido ou valor de exemplaridade se projectam transtemporalmente; no fundo, e como alguém já disse, a lenda "pensa e informa o espaço, satura-o de tempo e incorpora-lhe a história" e deste modo contribui para uma "intensificação da percepção da terra natal".


Num outro domínio do imaginário se situam algumas obras de Conceição Maciel (S. João, 1946), como A Uva Mágica (1999) e A Ilha Mágica (2000), que integram o campo da literatura infanto-juvenil, sem grande tradição nos Açores, embora me ocorram, por exemplo as Munhecas de Florêncio Terra e, mais recentemente As Histórias da Lita, de Natália Almeida.
Aproveitando as virtualidades e as dinâmicas processuais do conto maravilhoso, mas introduzindo-lhes já os sinais de alguma modernidade, Conceição Maciel configura nesses dois livros um quotidiano rural ainda próximo e familiar no qual o maravilhoso irrompe de forma absolutamente natural (como é regra, aliás) e vem dizer-nos que qualquer ilha pode ser mágica, desde que acreditemos no poder criador da palavra e na necessidade de sonhar ("é preciso regar os sonhos", escreve-se num dos contos). Embora, é certo, talvez haja (há mesmo de certeza) ilhas mais mágicas do que outras, particularmente aquelas que se tornaram o nosso forro íntimo e a que se regressa pela palavra para recuperar um tempo de que nos distanciamos: mas estes são contos de outras escritas, as de O casaco de baeta (2001), por exemplo, ou então as de Maregeia (1999), em que a contista envereda pelo lirismo para exprimir a verdade sentida de uma ilha já ao longe e cujos sons repercutem ainda na diversidade rítmica de uma poesia seduzida pelo andamento do velho romanceiro e nisso inscrevendo a complexa teia de aspirações e anseios, libertação final ("Sonho", p 61):
O meu sonho era tão lindo
Nascera à beira do mar
Tinha pássaros tinha lua
E tinha gaivotas no ar
Tinha ondas tinha praias
Salpicadas de luar
Uma menina de tranças
Dançava ali com o mar
Tinha rochas muitas rochas
Cantarolando a chorar
Ou talvez fossem as ondas
No seu lento marulhar
Quis agarrar a menina
Não se fosse ela afogar
Apanhei uma gaivota
Que se escapou a voar.

À distância fala também a figura feminina que se ergue no interior de Permanências (1992), de Judite Jorge (Pontas Negras, 1965), para, a partir das margens de um Tejo tacanho e já sem naus, recuperar o tempo insular da infância e adolescência: contraponto ao presente fechado de Lisboa, a ilha permanece, impõe-se a Júlia como o centro da sua vida, embora o afastamento não apague de todo os traços de um tempo amargo e ácido (início dos anos setenta), marcado pela circularidade dos dias, mas cujas arestas se diluíam de algum modo na imensidão do mar aberto. Retrospectiva em que Júlia vê passar a sua história de amores e desencontros, expectativas e desencantos, é ainda o retrato de um quadro picoense de forte ruralidade, vivida num ambiente de proximidade humana e social. Como o é também, e por maioria de razão, o desse universo em que se move Maria Jorge (Afectos de Alma, 2001), num tempo em que a América ainda lhe não dera o nome de Maria Polley, além de afectos e decepções várias. Recuperando à realidade histórica alguns dados e a figura de mulher que ocupa o centro da acção, esta narrativa de Judite Jorge investe no tema da emigração para a América e recobre ficcionalmente um período de tempo que vai de finais do século dezanove até aos anos setenta do século seguinte: refiguração do microcosmos rural das Pontas Negras e da experiência californiana posterior, aí se inscreve o vaivém ou a circulação entre a ilha e a América, ao nível da realidade narrativa , mas também no plano de um imaginário colectivo que obsessivamente se alimenta da imagem dessa terra da abundância como contraponto a um quotidiano de pobreza, coisa que, numa outra metodologia de aproximação, vem confirmada pelo trabalho de Manuel Armando Oliveira
E se em Afectos de Alma o investimento temático se afigura como um dos mais recorrentes da literatura açoriana, merecem aqui destaque, entre outras coisas, a centralidade da personagem feminina, num lugar usualmente ocupado pelo homem, e ainda o seu perfil positivo que contrasta com os estereótipos negativos e com o olhar enviesado que algumas obras lançam não apenas sobre a "americana", mas sobre a mulher em geral. E é disto que, numa perspectiva já analítica, nos dá conta o livro Imagens de Mulheres (2000), de Maria de Jesus Maciel (S. João, 1946): estudando um corpo de adágios açorianos e os contos de Dinis da Luz, a autora centra a sua observação na problemática da construção e modelagem da figura feminina e detecta aí um núcleo ideológico comum, a questão do amor, perspectivado sob diferentes ângulos, mais abertos uns, outros mais condicionados por pressupostos de natureza ético-religiosa, e em que não é difícil detectar as marcas sócio-espaciais e temporais.
Neste contexto de escritas femininas, de referir ainda Cisaltina Martins Cardoso, picoense que o acaso fez nascer no Faial (1942) e autora até agora de um único livro, Poemas de basalto e solidão (1989). Se há nos seus poemas uma voz que irrompe de modo afirmativo (e não apenas na secção intitulada "Mãe-Mulher") para enunciar a sua condição de mulher, num tom de "ufanismo" que é ao mesmo tempo o sinal de uma liberdade assumida perante o mundo, também é certo que, por vezes, dessa voz se desprende um fio de solidão e um sentimento de abandono; e mesmo quando os poemas deixam à evidência os traços circunstanciais da sua génese, como nas sequências "Do basalto e de outros lugares" e "In memoriam", é igualmente possível detectar aí a oscilação entre o pólo diurno, solar da primeira delas e o tom pungente da segunda, onde o belo e tenso poema dedicado à memória de António Duarte é, para além de manifestação de amizade dorida, o testemunho das marcas irreparáveis do tempo.
De tempo, mas daquele que vai fluindo e desaparecendo nas margens da vida e que a palavra tenta suspender, nos falam as crónicas-evocações reunidas em Viver o Pico (2000), de Geraldo Soares (Piedade, 1927) e também as narrativas de O Trevo de Quatro Folhas (1983), de Helder Melo (Santa Cruz das Ribeiras, 1932) e de Fragmentos da Memória (1993), de Fernando Melo (S. João, 1932).
No primeiro caso, o registo descritivo serve a composição de uma diversificada galeria de figuras picoenses, pontuada por alguns apontamentos de natureza factual, umas e outros muito próximos ainda pela afectividade com que são evocados na prosa do cronista. Nos outros dois casos, a memória alimenta a dinâmica narrativa, entre o puro evocado e o refigurado ficcionalmente, numa propensão mais extensiva em Helder Melo e a que não falta a deriva de algum léxico precioso em demasia, e bastante mais sóbria e contida nas narrativas de Fernando Melo que, na sua aparente fragmentação e autonomia de superfície, compõem um percurso de vivência(s) no Pico até ao salto para a ilha vizinha, um salto que marca ao mesmo tempo a passagem a uma nova etapa da vida. Cruzam-se nestas obras as vozes e os perfis de gentes e ainda os sinais de um tempo que, para o melhor e para o pior também, os dias presentes vão diluindo e a memória envolve num afectuoso tom de melancolia e cumplicidade.
O mesmo tom de cumplicidade pode ser detectado em Deserto de todas as chuvas (2001), de Sidónio Bettencourt (S. Miguel, 1955), picoense por razões de escrita e reivindicação de raízes familiares. Ao instituir a rua de baixo como o seu microcosmo de referência (não é necessário que todos os "condados" tenham a dimensão do de Faulkner), o autor faz convergir nele os traços de um universo lajense (e, por extensão, insular) de relacionamentos humanos que a precariedade e as contingências da vida tornam ainda mais íntimos, na festa e no luto, no medo e na euforia - num discurso marcado pela enumeração e a acumulação e tendendo à representação global desse mundo e à sua revelação. Noutros casos, porém, as imagens aí colhidas esbatem o seu valor referencial, desviadas já para um processo em que a voz lírica se faz ouvir perante o silêncio para dar-nos a conhecer um mundo interior tumultuoso, dividido entre as vivências do passado e as do presente, num discurso marcado pela força transfiguradora da subjectividade e de um manuseamento verbal que transformam o real evocado em pura matéria poética.

***
Aqui chegados, é tempo de dizer aquilo que restaria ainda fazer: em primeiro lugar, colmatar as lacunas, obviamente, e alargar a análise a autores cuja obra se quedou pelo simples registo jornalístico, sem recolha em livro. Seria caso para indagar dos poemas de Fernando de Castro (nascido nas Lajes e por acaso aqui falecido em 1923), alguns perdidos por revistas de Lisboa, onde se fixara depois dos estudos e onde foi um dos do círculo de Fernando Pessoa, com quem traduziu livros espíritas para uma editora da capital (como refere Pedro da Silveira); seria caso também para inquirir da importância e qualidade literárias da sátira que Manuel de Ávila Coelho , sob o pseudónimo de Frei Pedro, publicou durante anos no jornal O Telégrafo e ver, por exemplo, até que ponto aí se prolonga (ou não) a lição do grande poeta satírico do século XIX, Manuel Garcia Monteiro, também ele com ascendência familiar no Concelho das Lajes.
E poderíamos mesmo avançar até ao campo da escrita emigrante para detectar o modo como de Artur Ávila e Manuel Macedo a Frank Gaspar se equaciona literariamente a relação com a Ilha e como a visão que dela se tem é ainda função de uma proximidade física e temporal ou, então, já traz em si os sinais de uma memória diferida, atravessada pelos sinais de outras aprendizagens e vivências culturais.
Estas seriam propostas para desenvolver talvez noutra ocasião, aprofundando até o sentido e o conteúdo daquilo que agora aqui se deixa registado, na convicção de que tão importante como o reconhecimento público é a partilha e a divulgação deste património cultural e simbólico que pela escrita nos foi legado.