VAMBERTO FREITAS -Jornalismo e Cidadania nos Açores:
Das Vozes Públicas e Das Vozes Publicadas


Permitam-me colocar desde já algumas cartas na mesa: toda a minha formação e educação jornalística aconteceu-me a partir de uma universidade norte-americana, e a minha colaboração activa nos mais variados jornais e outras publicações foi durante muitos anos feita também a partir desse país (na Califórnia), tendo sempre como receptor o público leitor de língua portuguesa, simultaneamente em Portugal e na diáspora. Primeiro como colaborador de órgãos de informação da nossa imigração na Califórnia e na costa atlântica, e depois (a partir de fins da década de 70) como correspondente do Diário de Notícias, de Lisboa, a convite de Mário Mesquita. A minha colaboração nos jornais açorianos do arquipélago viria um pouco mais tarde, mas tornar-se-ia, neste últimos dez anos e como resultado da minha residência em São Miguel, intensa e ocupando lugar quase exclusivamente entre a crítica literária e mais generalizadamente cultural e política da Região Autónoma nessa mesma área. Também durante os últimos cinco anos, dirigi e coordenei o agora extinto Suplemento Açoriano de Cultura do Correio dos Açores. Desta experiência falarei mais pormenorizadamente um pouco adiante, pois, para mim, cultura e cidadania, ou melhor, a cultura como acto eminentemente cívico, foi sempre o fio condutor não só do que escrevo e do jornalismo que tenho praticado, como espécie de plataforma ética na escolha e projecção que eu dava aos trabalhos enviados para o mesmo suplemento. Se insisto aqui na minha própria intervenção jornalística adentro da realidade sócio-cultural que são efectivamente os Açores é porque o meu papel de observador e comentador da Imprensa açoriana neste colóquio naturalmente não pode nunca estar desligado desse meu próprio percurso. Desde cedo que tenho reflectido e escrito sobre o acto jornalístico, o meu e o dos outros, o da grande Imprensa norte-americana, e particularmente o acto de escrever dos Açores e da diáspora.
É pois na América do Norte que tive os primeiros contactos, como participante activo ou como consumidor, com toda a Imprensa. É dessa mesma Imprensa, irremediavelmente, que retive para sempre os padrões profissionais e éticos no que respeita ao jornalismo (ou "infoentretenimento") como discurso público e cívico, vinculado tanto numa qualquer reportagem como num comentário, num artigo de opinião, ou mais expansivamente num ensaio analítico. Quando saí dos Estados Unidos para me fixar nos Açores, escrevi a um amigo (e mais tarde num ensaio sobre o jornalismo comunitário da Califórnia) que um dos meus grandes alívios era o de não ter de ler mais o dinossáurico Los Angeles Times: não me fariam falta a sua voz imperial nem os seus infindáveis conteúdos em diversos cadernos diários e dirigidos aos leitores conforme a zona onde vivessem. Após dez anos de Açores e dez anos de leitura predominantemente de jornais portugueses, regionais e nacionais, já engoli vezes sem fim essas minhas palavras de suposta despedida. Hoje, diariamente através da internet, consulto avidamente não só o Los Angeles Times, como muitos outros jornais norte-americanos. Nem falo de "qualidade", porque esse é sempre um discutível juízo de valor, e muitos dos nossos jornais contam aqui e ali com alguns dos melhores comentadores e jornalistas da Europa. Não falo de televisão porque não vejo por cá nada nem pior nem melhor do que via e ouvia no meu outro país. Mas falo, repito, de uma ética que creio nos faltar por cá: a absoluta e perpétua responsabilidade do indivíduo perante a comunidade. Um dia em Bruxelas perguntei a um grande poeta português aqui do Continente por que era que ele achava os belgas francófonos tão parecidos connosco, desde a confusão nas ruas a atitudes, digamos, existenciais. A sua resposta foi rápida e lapidar: são de civilização católica como nós, e portanto sabem que podem "pecar" toda a semana, que serão absolvidos ao domingo, podendo assim recomeçar tudo de novo no dia seguinte. Na graça das suas palavras residiam e residem certas verdades. A reinvenção diária de cada um de nós, a de tirar e a de pôr as máscaras quotidianas que nos permitem o equilíbrio entre o cidadão individual e a sua comunidade, terá muito a ver com esta noção de que, no mundo anglo-saxónico e protestante, não há salvação para além das próprias e solitárias consciências. No protocolo entre o jornalista e os seus leitores, entre o apresentador de televisão e os seus telespectadores, entre o homem e mulher da rádio e os seus ouvintes, não há entidade de mediação ética em primeiro lugar, mas sim a formação e consciencialização de quem detém essa voz pública e o poder de agendar toda e qualquer discussão colectiva. A facilidade com que, nessas mesmas sociedades, um profissional perde a sua credibilidade e lugar faz com que cada palavra, cada ideia, ou até mesmo uma mera constatação, seja afinadamente medida e pesada. Um manual idealista de jornalismo que eu então consultava constantemente enquanto ainda na minha juventude mantinha uma coluna num jornal luso-americano era implacável: tens de levar uma vida exemplar se queres ter a autoridade moral e intelectual de opinar e mesmo de castigar o teu público leitor ou a tua comunidade. Ninguém espera isso do cidadão-jornalista, mas a delimitação de terreno e o apelo à humildade serviam e suponho que ainda servem aos melhores e aos mais sérios de entre nós. É certo que nos Estados Unidos os jornais mais vendidos e as televisões mais vistas são as que tudo nivelam por baixo. O escandaloso National Enquirer ainda hoje procura e anuncia amantes de Clinton, rejubila com um possível divórcio do ex-presidente, e gasta milhões em tribunais em defesa das suas mentiras e os mais desvairados exageros sobre outras figuras públicas e celebridades. Mas é também nos Estados onde se publicam o New York Times, o Washington Post e, claro está, o meu saudoso Los Angeles Times, ou seja, talvez os melhores jornais do mundo, lidos diariamente pelos líderes mundiais da nossa era. O equilíbrio entre o indivíduo e a sua comunidade é sustentado também pelo equilíbrio entre o melhor e o pior das vozes públicas daquela e de outras sociedades irmãs, como o Canadá e a Grã-Bretanha. Deixo a outros a opinião sobre o que se passa no nosso país; estamos ainda por saber se a nossa tradição jornalística e intelectual poderá sustentar ou não a convivência entre a qualidade dos nossos jornais de referência e o pior que em letra impressa possamos imaginar, e que anda por aí aos gritos histéricos em certas páginas e em certos écrans.
Nos Açores, e apesar da nossa longa tradição jornalística, tudo isto está ainda num estado de formação, tudo é muito mais precário, e, devido à nossa pequenez territorial e de população, tudo tem mais impacto e dramatismo imediato. Perguntou-me um dia um colega a longa distância como é que se poderia fazer crítica literária num meio em que garantidamente o crítico se encontraria na rua ou café como autor visado. Disse-lhe que de duas maneiras: ou com toda a seriedade e boa vontade, ou então com toda a falta de vergonha ou sentido ético da vida. Quando Nemésio dizia que a geografia valia tanto como a história para nós, creio que se referia também ao cerco físico e de todo limitador da nossa convivência. A liberdade de expressão nos Açores poderá não estar condicionada pelo poder político e económico, mas certamente está pelo cerco geografia. Deverá ser isso a vida em ilha: a consciência de que o outro fica ali mesmo ao nosso lado, e a sua cosmovisão poderá ou não coincidir com a nossa. Só que nada nos Açores é abstracto, tudo toma uma forma concreta e intensamente vivida. O elogio ou a ofensa nunca são meramente intelectuais, são sempre intensamente pessoais e interiorizados. Muitos, numa grande cidade como Lisboa, poderão ansiar por este significado profundo da sua actividade jornalística ou artística, pois tudo tem um impacto imediato para o bem e para o mal. Seja como for, em ilhas como os Açores, o jornalismo nunca poderá ter a pretensão de que as audiências e públicos ficam longe, de que tudo se passa a um vasto nível ora de indiferença ora de debate aberto e pacífico. Num meio como este, o que ainda está por acontecer, a formação da maioria dos jornalistas e de outros com voz pública terá de ser ainda mais profunda e intensa, na defesa contra a ofensa ética e especialmente contra a constante tentativa de os poderes influenciarem e moldarem essas vozes, uma vez mais, públicas, que não exclusivamente partidárias, facciosas ou aprisionadas aos medos de ilha, à necessidade de salvação económica, acima de tudo, pessoal e familiar. Num texto intitulado "Jornalismo e Juventude", que publiquei pela ocasião do lançamento de um periódico açoriano há alguns anos e que se dirigia directamente aos seus responsáveis, escrevi o seguinte:
Quem entra no jornalismo açoriano para ganhar dinheiro, ou é um génio ou então acaba de chegar de Marte; quem entra no jornalismo açoriano para se autopromover [o que nos acontece com frequência, diga-se de passagem, por parte daqueles que visam a sua entrada nos aparelhos partidários ou estatais] politicamente ou para publicar as suas raivas e ressentimentos pessoais - também vai descobrir rapidamente que nada de bom o espera. É que as comunidades vivem estas saudáveis contradições - podem alguns dia a dia praticar os seus vícios e desvios éticos de todo o tipo, mas não gostam de ver o seu próprio reflexo. Um jornal ou revista [ou uma televisão ou uma rádio] por mais que se o negue, é todavia um outro espelho da nossa comunidade, logo ninguém está inocente de conivências directas ou indirectas. Por detrás de cada charlatão - nos Açores como em toda a parte - está um ser que, pela memória de gente e tempos mais decentes, pela memória de ensinamentos morais e cívicos, pela táctica pura de sobrevivência entre gente séria, pensa-se virtuoso, no sentido bíblico da palavra, pensa-se um grande cidadão que pratica os seus desvios cívicos ou utiliza outros seres humanos como meros instrumentos das suas obscuras ambições, mas tudo pretende fazer a bem da comunidade (…) Escrever é obedecer a um chamamento interior, a uma forte necessidade de comungar com os outros toda a tradição intelectual que é nossa e de que uma sociedade democrática e aberta, à Karl Popper, não prescinde. Os agentes políticos totalitários em qualquer parte dependem da ignorância dos cidadãos, do reino da estupidez e do obscurantismo generalizado. Não dêem tréguas a esta nossa condição, não tenham medo deste trio diabólico.

Por outro lado, nos Açores está pela primeira vez na nossa história a tentativa de se criar uma sociedade civil, nos limites de uma muito reduzida população dispersa por nove ilhas, vinda de uma tradição corporativista e cuja escolaridade, no contexto europeu desenvolvido, só agora começa a atingir os anos e os níveis minimamente essenciais. Passar de um discurso comunitário, por vezes primitivamente comunitário, para um discurso alargadamente societal não é nem está a ser fácil. Ultrapassar a fulanização vai nos ser ainda muito difícil, a não ser quando o acto jornalístico partir de açorianos com referenciais no exterior do arquipélago, aqueles que cá fora não vivem a fatalidade matemática de terem de olhar olhos nos olhos os que dia a dia ou semana a semana são os seus alvos directos ou indirectos.
Por mais antiga que seja a sociedade açoriana, tudo chegou tardiamente ao arquipélago. Foi só há pouquíssimos anos que se debateu, e por vezes emotivamente, se os canais de televisão nacionais deveriam ou não ser transmitidos directamente para toda a população, não fossem estes secundarizar o canal regional, e logo, por acréscimo, minimizar as vozes públicas açorianas. Enquanto isto, entrava sem grandes algazarras a TV cabo (seguindo a venda de parabólicas, que então já estavam abundantemente presentes na Região), pondo fim ao debate entre os que então governavam as ilhas e os que entendiam que o país poderia estar repartido pela sua geografia mas não pela sua Imprensa ou outras instituições nacionais. Creio ainda ser cedo de mais para avaliarmos o impacto que esta nova realidade tem entre a população que já dela desfruta, mas poderemos aventurar algumas hipóteses. Com o ensino superior nos Açores e o consequente ensino da língua inglesa a esse nível, difícil será evitar que uma percentagem substancial da classe culta açoriana não esteja ligada diariamente às ofertas televisivas americanas e britânicas, particularmente numas ilhas cuja história se divide entre as imagens aprendidas de Portugal e as miragens sonhadas das Américas. Salman Rushdie escreveu num dos seus romances que, num mundo globalizado, a distância entre duas aldeias vizinhas na Índia era muito mais longa do que a distância entre Bombaim e Londres. Digo com frequência aos meus alunos da disciplina de língua inglesa que eles muito provavelmente já se sentiriam menos estranhos em Boston do que nas suas freguesias açorianas ou nas suas aldeias continentais. Já somos todos emigrantes, sem necessitar de abandonar o nosso espaço-pátrio. O multiculturalismo acontece todos os dias, é vivido por toda a gente mesmo numa sociedade relativamente homogénea (e até isolada) como a açoriana. Não há mais experiências monoculturais na aldeia global, e não será por mero acidente ou moda literária que os escritores que mais atenção despertam globalmente são os que vivem e transfiguram a experiência transcontinental ou, uma vez mais, multicultural. Depois temos a internet, mesmo que por enquanto esteja reduzida a uma elite cultural e profissional. Há uns tempos, um amigo da Califórnia alertava-me através do correio electrónico para um determinado artigo que acabara de ser publicado no New York Times. Agradeci-lhe, mas tive de lhe dizer que já o tinha lido ao chegar ao meu gabinete, provavelmente antes de ele, devido ao fuso horário, o ter lido na costa do Pacífico. Estávamos pois em condições de encetar de imediato a nossa discussão em volta do tema em causa. Voltando aqui à televisão regional, adiciono apenas que tem sido objecto das mais duras críticas e de emotivas defesas, dando lugar saudavelmente a alguns encontros de reflexão acerca da sua própria identidade e do lugar que entre nós deverá um dia ocupar. Não quero falar neste momento da sua qualidade, mas direi tão-só que, repetindo o que disse anteriormente acerca das outras televisões nacionais e internacionais, não é pior nem melhor do que qualquer uma delas. A RTP/A tende a ser avaliada internamente pelos conteúdos e perspectivas do seu telejornal. Creio que a sua eventual despoliticização irá acontecendo conforme o nível de desenvolvimento e consciencialização não só dos seus responsáveis, desde a direcção aos repórteres como, digo aqui enfaticamente, a de toda a população do arquipélago. Bem sei que é um cliché, mas é também a minha opinião que cada terra tem exactamente o que merece ou o que pede.
Um pouco antes de tudo isto, a rádio de estado, a RDP/A, já se tinha habituado às rádios locais, agora creio que em concorrência directa, mesmo que os recursos de uns e outros sejam desiguais em termos absolutos. Algumas, ligadas directamente a outras rádios nacionais para determinados programas e noticiários, oferecem novas perspectivas e uma multiplicidade de opiniões. No entanto, são a televisão e a rádio do estado que mais têm unificado política e culturalmente o nosso arquipélago, imagens e palavras dando-nos o sentido comum da nossa história e condição existencial ante a restante comunidade nacional e internacional. Num mercado tão reduzido e precário como o nosso, por enquanto só com o apoio do Estado será possível oferecer este ponto comum entre todos os açorianos, dentro e fora do arquipélago. Durante os três anos que tive o privilégio de representar os Açores no Conselho de Opinião da RDP, sempre fiz lembrar esses factos aos seus responsáveis aqui no Continente, não se podendo equacionar no caso açoriano os gastos com números das audiências, pois a essencialidade da unidade nacional não podia ser contabilizada como noutras geografias.
Os jornais nas mais populosas ilhas açorianas encetaram também por volta do início da década de 90 a sua modernização técnica e alargamento do seu discurso e temáticas em todas as áreas de interesse público, e por vezes, diga-se com toda a brevidade, de interesses privados. Alvin Toffler dizia na década de 70, olhando para o que então acontecia à sua volta nos Estados Unidos, que o movimento era agora ao contrário: dos grandes jornais para os que retratavam e se dirigiam às pequenas comunidades numa sociedade multicultural, essa confederação feita das mais variadas e distantes etnias. Mencionava com certo destaque a imprensa imigrante e luso-americana de cidades como New Bedford. Nessa altura, eu já escrevia em jornais de língua portuguesa na Califórnia; o elogio à pequenez foi-me então particularmente gratificante. Os grandes jornais não desapareceram (felizmente), mas tiveram de se refazer de modos vários, desde o grafismo imposto pelas novas tecnologias e estéticas aos seus conteúdos, que se dividiram entre as questões nacionais e internacionais até aos infindáveis estilos de vida e culturas das comunidades locais que compõem as grandes áreas metropolitanas. Ninguém nos Açores vai deixar de necessitar dos seus jornais, mas melhor seria que as publicações nacionais tivessem mais circulação e não se restringissem quase só às elites culturais e políticas citadinas de Ponta Delgada, Angra do Heroísmo e Horta. Um exemplo: sem saber quantas assinaturas terá um JL, sei que na Livraria SolMar, talvez o mais dinâmico espaço privado de cultura nos Açores, não se vende muito mais do que cinco exemplares, três ou quatro Diário de Notícias, nos dias que é vendido, ficando o Expresso entre os 40/45 exemplares ao fim de semana. Na precariedade profissional e ética da Imprensa regional, o mínimo desvio ou desentendimento dará lugar ao quase silenciamento de qualquer voz. Recordemos que, apesar de tentativas de certos jornais se estenderem a todo o arquipélago, ou a uma ou outra ilha em particular que não a sua, a verdade é que cada um deles está limitado, quanto à sua esfera de real influência, ao seu próprio meio - por razões históricas de divisionismos de toda a ordem, e ainda mais por interesses culturalmente específicos de cada ilha. Será em vão que se procura um jornal, por exemplo, da ilha Terceira, na maioria, se não em todos, os postos de venda de São Miguel, e vice-versa.
A longa tradição da Imprensa escrita nos Açores (com a tardia introdução de outros meios de comunicação nas ilhas) dá-lhe naturalmente um estatuto privilegiado no palco da vida pública e cívica do arquipélago. As gerações açorianas intelectualmente mais activas começaram a sua caminhada antes do 25 de Abril, e continuam vinculadas a um discurso público e a uma retórica que só nos jornais encontram o espaço adequado e historicamente legitimado. Por seu turno, só os jornais nos Açores (como em toda a parte, supõe-se) têm tido a capacidade e a memória histórica de manter vivo o debate e de constantemente enriquecer os nossos arquivos intelectuais. O caso do nosso suplementarismo literário e cultural é o exemplo vivo (e talvez inigualável em todo o país) do que acabo de dizer. Escrevi um dia a propósito de tudo isto que os nossos suplementos (os nossos jornais) foram também durante muito tempo outro tipo de universidade. Falei do isolamento que então era quase absoluto e da nossa (também histórica) dificuldade em penetrar e fazer parte do imaginário continental, tornando os nossos jornais num espaço comum de todos quantos iam vivendo e escrevendo os Açores ao longo dos tempos, até à abertura da sociedade portuguesa em 1974. Era nos jornais que apesar de tudo se agitavam as águas, e era nos jornais que os açorianos no exterior podiam comunicar sobre o que lá for a se passava, oferecendo de imediato um referencial mais vasto e esclarecedor do nosso lugar no esquema das coisas. Uma das experiências intelectuais mais gratificantes da minha vida foi a coordenação do Suplemento Açoriano de Cultura, já aqui mencionado. Publicado durante cinco anos, após as primeiras semanas passou a doze páginas de conteúdo, e sem qualquer publicidade. O único problema que tive foi seleccionar a colaboração que chegava um pouco de toda a parte onde os Açores são vividos, estudados e lembrados. Juntou as comunidades intelectuais independentes e os críticos e estudiosos universitários de vários continentes e arquipélagos. Falo neste exemplo daquilo que entre nós se tem feito porque ilustra também a outra face do jornalismo nos Açores, na qual cultura e cidadania estiveram sempre do mesmo lado. O Correio dos Açores, não só não exigia publicidade, como autorizava o envio gratuito do suplemento a indivíduos e instituições que se dedicavam, (e se dedicam) ao estudo do arquipélago, tendo essa lista especial atingido quase trezentos nomes, cujos endereços iam desde Santa Catarina no Brasil à Roménia (donde também nos chegava colaboração). Ninguém aqui falava em dinheiro: o jornal entendia o projecto quase como uma obrigação intelectual imposta pela tradição da terra em que está inserido.
Nos Açores, pois, o jornalismo, nas suas variadas facetas, terá por enquanto de se defrontar com estas duas realidades: a tentação do amesquinhamento da vida pública e privada dos cidadãos e uma forte tradição de cultura e cidadania. É claro que nada disto é novo entre nós; pertencemos a uma cultura que sempre escolheu a sátira e o mal dizer sobre o riso saudável do humor. Por outro lado, não sei por quanto tempo mais os açorianos serão senhores do seu destino, pois a globalização tem esses outros custos, como a entrada natural de forças nacionais e internacionais poderosas, mas mais ou menos alheias à história regional e cultura de sobrevivência e diálogo com o mundo. O preço da modernização ninguém poupará, mas as vantagens são e serão muitas. Se um dia os Açores conseguirem construir uma economia regional que sustente toda a sua população activa, qualquer reajustamento cultural, é de crer, será justificado. A presente dinâmica cultural é de sincretismo e convivências, dando e recebendo influências das próximas e distantes geografias culturais. Portugal é um país de emigração, com um número significativo da sua população nas Américas e na Europa. As segundas e demais gerações, talvez pela primeira vez na nossa história, procuram activamente as suas raízes, a outra sua identidade que os grandes meios onde nasceram e vivem não lhes proporcionam. A memória colectiva que lhes foi transmitida de modos vários requer um ponto concreto de referência. Reparemos, por exemplo, nos escritores e poetas luso-americanos, como Katherine Vaz, já publicada no nosso país, e Frank X. Gaspar, que começa já a ser estudado e comentado nos meios universitários. Nas suas obras fazem chamamentos às mais diversas figuras da nossa tradição literária, e a toda a mítica e história lusitanas. O mesmo já aconteceu com a luso-francesa Brigitte Pauline-Neto, quando num dos seus romances, A Melancolia do Geógrafo, nos oferece uma visão do Portugal contemporâneo bem diferente dos que não têm outros referenciais íntimos no exterior.
A presente dinâmica cultural nos Açores - jornalismo e cidadania só poderão ser entendidos nesse contexto total - envolve cada vez mais essas forças anímicas que a nossa história criou. O nosso discurso cultural centra-se e sobretudo descentra-se activamente, permitindo uma osmose de alargamento aprofundado, que se fará sentir para além de todas e qualquer vontade ou tentação de isolamento. Recentemente, um colóquio na Universidade de Yale sobre os primeiros cem anos de literatura e cultura luso-americanas envolveu num vivo debate gente proveniente do vasto mundo lusófono e alguns anglo-americanos, em que os açorianos e seus descendentes na América, na companhia de nomes como Jorge de Sena e José Rodrigues Miguéis, foram o centro de todas as atenções. Pertencemos agora a um outro país da imaginação, necessariamente desterritorializado, feito universal não pela retórica literária, mas sim pelo reconhecimento legitimador de que as fronteiras do estado-nação estão a desfazer-se perante os novos factos político-culturais. Algo de novo está de facto a acontecer nos Açores, como em toda a parte. Poucos dias depois do encontro de Yale, o simpósio Filamentos da Herança Atlântica na Califórnia encerrava o seu primeiro ciclo com a décima primeira edição, para renascer brevemente sob a direcção de um Institute for Azorean-American Studies, que estará ligado a uma prestigiada universidade californiana. Uma vez mais, entende-se que já não é possível debater os Açores sem esse enquadramento internacional, sem se falar de nós nas ricas linguagens pertencentes a todos os que reclamam o arquipélago como viveiro de nascença e destino, sem integrarmos no nosso imaginário e na nossa visão do futuro as gerações que o multiculturalismo das sociedades ocidentais agora nos devolvem.
Por outras palavras, jornalismo e cidadania nos Açores em pouco se distinguem (para além da escala em que as coisas naturalmente são vividas) do que se vai passando noutras e mais vastas latitudes. Vem aí uma outra geração, livre dos complexos e raivas que a nossa sempre transportou consigo, esta que foi a geração do limbo histórico e político, num país simultaneamente medieval e moderno. As suas geografias já são outras, muito mais vastas na realidade e na imaginação, e creio que muito mais criativas. t

Nota: ensaio extraído do novo livro de Vamberto Freitas, Jornalismo e Cidadania: Dos Açores à Califórnia, a ser publicado brevemente pelas Edições Salamandra, Lisboa, 2002.