|
Importante página da história
do povoamento do Sul do Brasil foi escrita pela gente simples,
sofrida e corajosa do Arquipélago dos Açores –
“os açorianos” que a 21 de Outubro de 1747
deixaram o porto de Angra, na Ilha Terceira, atravessaram o Atlântico
e trouxeram às terras de Santa Catarina conhecimento, técnicas,
usos e costumes, valores, sonhos e esperança.. Eram oriundos
de todas as Ilhas. No entanto, o maior número de alistamentos
foram de casais provenientes da Ilha de São Jorge, seguida
pelas Ilhas da Graciosa, Pico, Terceira, Faial, e pela de São
Miguel.
Ao final da grande diáspora (1748 – 1756) marcada
por sofrimentos, descasos e promessas não cumpridas, um
contingente humano significativo , cerca de seis mil, estava fixado
em oito pontos do litoral catarinense: Nossa Senhora da Conceição,
Nossa Senhora das Necessidades e Santo Antonio, Nossas Senhora
do Desterro (hoje, Florianópolis) – na Ilha de Santa
Catarina, e nossa Senhora do Rosário da Enseada de Brito,
São José da Terra Firme. São Miguel da Terra
Firme, Sant’Ana e Vila Nova e Santo Antônio dos Anjos
da Laguna – no continente
Os açorianos entrelaçaram fios na grande renda da
vida e com outros povos teceram a história de Santa Catarina,
contribuindo para a formação da sociedade catarinense
e de um povo forte, trabalhador, empreendedor e tolerante.
Uma história social ímpar cujo legado venceu o tempo,
perpassou gerações e hoje retrata a alma, o sentir,
o fazer, o imaginário, o jeito de ser e estar de nossa
gente.
Duzentos e cinqüenta e seis anos depois, pode-se afirmar
que um relevante patrimônio cultural expresso e retratado
por traços sobreviventes de uma longínqua matriz
açoriana está presente em todo o litoral de Santa
Catarina, sendo que a maior referência é o culto
em Louvor ao Espírito Santo. Identificada como a Festa
Tradicional Religiosa de maior expressão em, aproximadamente,
cinqüenta municípios da orla catarinense e na capital
Florianópolis, na Ilha Santa Catarina. Sua manifestação
apresenta peculiaridades reveladas na diversidade de celebrar
o Espírito Santo em cada localidade onde se realiza o festejo.
No entanto, são iguais na sua essência, no seu aspecto
nuclear, na mensagem emblemática, na simbologia e na sua
finalidade.
A bandeira, a coroa,o cetro, a salva, o imperador, a imperatriz,
a corte, a coroação, a procissão do séqüito
imperial, as novenas, as missas,os mordomos,os festeiros, as promessas,
as massas sovadas, os pãezinhos do Espírito Santo,
as cantorias, os foliões, os fogos de artifício
e os folguedos integram a simbologia e a representação
externa da celebração do culto ao Divino, revelando
práticas coletivas de conteúdo simbólico
e subjetivo, num ritual longo e pomposo, misto de religioso, profano
e folclórico.
Vinculadas ao calendário litúrgico da Igreja Católica,
as Festas do Espírito Santo apresentam uma certa autonomia
na sua organização e realização nas
localidades onde existem as Irmandades do Espírito Santo.
No entanto, onde não se registra a presença das
referidas Irmandades, a ação da Igreja é
sentida fortemente no controle e na interferência direta
dos párocos e padres na organização, no ritual
e na programação dos festejos.
A Festa com seus símbolos e rituais apresenta partes bem
definidas e articuladas entre si, a saber: conjunto de cerimônias
religiosas, ritos sacro-profanos, folguedos populares e o périplo
da bandeira do Divino no período que antecede a Festa,
bem como sua presença emblemática em todas as cerimônias
como uma referência simbólica para o povo que a reverencia
com fé e devoção.
É a Bandeira juntamente com a Coroa de prata lavrada, insígnia
principal de um conjunto formado por Cetro de prata (encimado
por uma pomba) e Salva, também de prata, onde ficam depositados
a Coroa e o Cetro que compreendem os símbolos centrais
da Festa e em torno dos quais gravitam todos os rituais de louvor
ao Divino. A mística da Festa é o Espírito
Santo, o Divino Paráclito, representado por uma pombinha
branca tanto na visão litúrgica católica
e cristã quanto na interpretação popular
e presente em todas as referências e alfaias da festividade.
O Casal Imperador (Mordomos ou Festeiros) e a Corte Imperial constituem
os atores principais das cerimônias e festejos em louvor
ao Espírito Santo. A Corte Imperial, formada por Imperador,
Imperatriz (crianças ou adolescentes) e um conjunto de
seis a oito pares de crianças que desempenham o papel de
damas e pajens, todos ricamente vestidos em trajes de época,
reproduzem a tradição secular em que a Rainha Isabel
de Aragão, mulher do Rei Dom Dinis de Portugal, instituiu
o culto do Espírito Santo.
Sua celebração ritualística tradicional concentra-se
fundamentalmente, na Sexta-feira, no Sábado e no Domingo.
Na sexta-feira ao anoitecer, o pároco, provedor da Irmandade
e irmãos, autoridades e convidados, acompanhados de uma
Banda Musical, vão buscar o Casal Imperador e a Corte Imperial
para participarem do ato litúrgico da Missa. O trajeto
é percorrido lentamente, sob os acordes da Banda Musical
e os aplausos da população. À frente as porta-bandeiras
vão abrindo caminho, sendo inúmeras vezes interrompidas
por fiéis que beijam a bandeira e suas inúmeras
fita multicoloridas. Ao chegar na Igreja, o Casal Imperador deposita
a Coroa e o Cetro no altar, numa oferenda ao Espírito Santo,
recebendo-a de volta ao término da missa. Após,
a celebração litúrgica, o Casal Imperador
e a Corte Imperial são conduzidos em procissão para
o “Império” ou local ornamentado que representa
os antigos Impérios – construções de
planta quadrangular, de uma só peça e de pequena
dimensão, tendo por aberturas uma porta fronteiriça
e janelas nas laterais e frontal triangular encimado por um dos
símbolos do Espírito Santo- a pomba ou a coroa –
e o registro da data de sua elevação. Singelas e
bonitas construções, os Impérios ficavam
junto à Igreja e eram abertos durante a celebração
de Pentecostes e da Trindade. Aos poucos foram desaparecendo e
hoje algumas localidades como Ribeirão da Ilha, Campeche,
Trindade e Lagoa da Conceição, na Ilha de Santa
Catarina e nas cidades de São José, Jaguaruna e
Mirim ainda conservam os Impérios dentro da sua finalidade.
Testemunhos de uma herança que, por via da diáspora,chegaram
aqui. Sobreviventes de uma manifestação, alimentada
e enriquecida a cada ano pelo povo que a promove com devoção
e louvor.
Junto às cerimônias religiosas acontecem os folguedos
populares, com cantorias e folias do Divino, apresentações
folclóricas, tocatas, quermesses, shows musicais,bailes
e queima de fogos de artifício.
O ritual de sexta-feira repete-se no sábado à noite,
domingo pela manhã e à tarde, quando é proclamado
o Casal Imperador que presidirá as festividades do ano
seguinte, encerrando o Ciclo do Divino,de muitos meses de planejamento
e organização. No entanto, é o domingo de
Pentecostes (na maioria das comunidades) o ponto culminante de
toda a Festa, quando acontece a missa solene de coroação.
Um dos momentos mais sublimes, onde a emoção perpassa
envolvendo a todos num clima de profunda religiosidade, fé
ao Divino Paráclito e de fraternidade cristã. Durante
toda a celebração, com entoação de
hinos em louvor ao Espírito Santo, Te-Deum, homilia ao
Evangelho e a solene coroação do Imperador (menino
ou adolescente),sente-se à intensidade da crença
e a força da cultura ancestral que se mantém viva
na memória de nossa gente.
No cenário da tocante cerimônia da coroação
do Imperador, por um breve instante, desaparecem as marcas do
tempo, as distantes geografias, ficam o cá e o lá
transformados em “nossa”- nossas Ilhas e nossa história
comum. Separados no tempo e no espaço, juntos no coração
e no louvor ao Divino Espírito Santo.
Lélia Pereira da Silva Nunes
Florianópolis – Ilha de Santa Catarina
Agosto - 2004
|