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Chegar a São Miguel é sempre uma
paixão. Ponta Delgada está linda! É uma cidade
aberta para o mundo, por ali se respira modernidade e se embriaga
com a beleza exuberante do verde de todos os matizes da paisagem,
o mar azul profundo a mexer com o imaginário, os campos
lavrados e as pastagens povoadas de gado preto e branco, num lindo
contraste com os novelos de muitos tons azulados das hortênsias
iluminadas pelo sol em tarde de primavera.
Além do mais, é ótimo rever os amigos, palrear
sem pressa e sem compromisso e passear por lugares gostosos sentindo-se
de alguma maneira parte daquele lugar de tantos afetos.
O tempo estava instável como era de se esperar. Todas as
estações num único dia. Uma inquietude que
tudo desperta e que acaba influenciando no estado de espírito
da gente. Uma Ilha de temperamento indomável como as suas
entranhas a tremer vez que outra.
Estava em Ponta Delgada para participar do III Encontro de Cultura
Popular promovido pela Universidade dos Açores e a Câmara
Municipal de Ponta Delgada. Na conferência de abertura,
Arnaldo Saraiva, da Universidade do Porto, um estudioso da literatura
brasileira ao longo da sua carreira acadêmica, falou sobre
“A Literatura Marginal Hoje”. Outros professores e
pesquisadores apresentaram relevantes contribuições,
criando espaço para um profícuo debate sobre a Cultura
Popular açoriana do mundo insular e de além-mar,
por outras margens do Atlântico. Estava por lá Maria
Wallenstein, que achei uma gracinha. Com olhos vivos, sorriso
aberto e franco, de bem com a vida apresentou um interessante
trabalho sobre a história e o imaginário do Teatro
Popular em São Miguel, fruto de muitos anos de investigação.
Bom mesmo foi o serão literário e musical que reuniu
artistas, escritores em torno do lançamento do livro “Ponta
Delgada Ficções”, uma coletânea de doze
textos literários produzidos por gente da terra ou que
vive nela, tendo por foco a cidade de Ponta Delgada. No andar
da palavra, as vozes deram o tom expressando na literatura ficcional
sensações, saudades, impressões, numa diversidade
de estilos. Doze textos a falar de realidades, de descobertas
e redescobertas, de vivências e convivências, do imaginário,
de memórias quase esquecidas no tempo, do futuro que já
chegou e do presente de uma Ponta Delgada com sentimento de bem
querer, de pertencer ao lugar, de partilhar mundos e histórias.
Entre os autores convidados pela Câmara de Ponta Delgada
para integrar a referida obra está Fernando Aires, um dos
cânones da literatura açoriana e que tive o prazer
de conhecer naquela noite. Autor renomado e respeitado por seus
pares. Um dos melhores prosadores portugueses. Um contador de
histórias impagável! Uma personalidade como o querido
Eduíno de Jesus que é seu amigo desde os bancos
escolares do Liceu Antero de Quental. Conversamos um bocado de
tudo e sobre tudo. Digamos que foi “um papo cabeça,”
como diria a minha filha Caroline.
A programação cultural diversificada que incluía
um concerto de Piano e Flauta de Paulo Pacheco e uma Revista Musical,
no recém-restaurado e muito bonito Coliseu Micaelense,
marcou o encerramento do Encontro de Cultura Popular.
Num regresso à Ilha de São Miguel, mesmo com a agenda
cheia e por poucos dias, não pode faltar uma passada na
esplanada do Centro Comercial, na Avenida Marginal, nem que seja
para tomar um “Garoto”, uma visita sem pressa a Livraria
SolMar, agora em novo e elegante espaço e visitar lugares
como o Porto Formoso onde se pode saborear caldeirada de peixe
e chicharros fritos divinos na companhia de amigos. Estas são
razões mais do que suficientes para querer regressar à
Ilha Verde e que sempre vale a pena.
Mas, não só. Ainda tem o Senhor Santo Cristo dos
Milagres que é arrebatador. Uma coisa é visitar
o Santuário nos outros dias do ano. Outra coisa é
assistir de perto as celebrações e festejos e sentir
a força da fé daquela gente a depositar todas as
suas aflições ao pé da imagem de um Cristo
- o “Ecce Homo” – dolorido e ao mesmo tempo
com um olhar doce, paternal, que só fala de esperança.
Aí se entende o que move aquela massa humana em torno de
uma grande fé ou crença popular tão forte
e de intensos significados que a faz una em todo arquipélago
e para onde convergem as preces e os olhares pungidos de tantos
fiéis.
O vento forte, a chuva e o frio fora do tempo e até um
breve ”blecaute” que atingiu Ponta Delgada na noite
de sexta-feira e da abertura da festa não impediu o ir
e vir dos devotos para uma oração, um olhar, uma
lágrima perdida, uma promessa devida. Da madrugada de sábado
até domingo procurei acompanhar e compreender os significados
do culto e do próprio ritual. Guardo na memória
os momentos de intensa religiosidade e beleza no Santuário
do Senhor Santo Cristo, onde um mar de flores abraçavam
a imagem e no lado de fora, no campo de São Francisco,
uma feérica iluminação dominava com arte
todo o espaço. Mas, ainda, guardo no coração
a comoção sentida no trasladar da imagem acompanhada
dos promesseiros e no acompanhamento da multidão pelas
ruas, cobertas de tapetes, na procissão do domingo.
Ponta Delgada, toda engalanada, assistiu e acompanhou rua por
rua, num mesmo ritmo, a procissão da imagem de Jesus Cristo
coroado de espinhos, sofrido, cheio de amor e levando com ele
todas as nossas aflições e esperanças. Meu
olhar ia do povo às janelas e varandas ornadas de flores
e lindas colchas, onde famílias confraternizavam e reverenciavam
a tradição secular, um testemunho de amor e devoção
que se repete há 305 anos com o mesmo louvor e devoção.
Magistral história de uma emoção coletiva
através do tempo. Algo verdadeiramente grandioso que nunca
vi igual e que nunca vou esquecer.
No voo de volta, na segunda-feira cedo, olhei a Ilha do alto,
majestosa, e circundei toda a paisagem, geograficamente recortada
no meio do Atlântico, como num abraço de até
logo a Ilha-lugar. A Ilha, abençoada pelo Arcanjo Miguel,
que me encanta cada vez que chego e ao partir sempre me emociono
como se deixasse algo muito querido para trás.
O escritor Scott Fitzgerald num dos seus contos, o belo “A
coisa sensível”, diz que não há o mesmo
amor duas vezes. Olha que há. Um amor pela Ilha de São
Miguel e pela minha Ilha-Mulher de Santa Catarina que me acolhe
no seu regaço a cada regresso.
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