Manuela Bairos - Cônsul - Geral de Portugal em Boston

Tradição e Progresso

“Ao Portal Adiaspora.com, que comemora hoje o seu quarto aniversário, quero saudar vivamente pela organização deste encontro de portugueses espalhados pelo mundo, justamente os portugueses da diáspora.

Sobre ‘Tradição e Progresso’ no contexto da comunidade portuguesa de Boston é o contributo que me foi pedido e sobre ele tentarei partilhar convosco uma modesta reflexão. Ao mesmo tempo, felicitar pela escolha de um tema muito actual e pertinente.
Em boa verdade, ‘Tradição e Progresso’ constitui a melhor síntese em relação aos desafios com que se depara a nossa comunidade em Massachussetts, e na mesma medida, o Consulado-Geral de Portugal em Boston.

Atarefa de conciliar tradição e progresso é a consequência natural e inevitável da adaptação a uma terra cheia de oportunidades por parte de uma população oriunda de um país, Portugal, com antigas e profundas tradições culturais.
Trata-se de um processo cujo alcance procuro apreender na sua complexidade para melhor poder servir as pessoas e a herança cultural portuguesa que elas desejam preservar para si e para os seus filhos.

Os EUA, pelo menos desde que as diversas vagas de imigrantes portugueses ali aportaram, encontraram-se na vanguarda dos processos de modernização no mundo ocidental. Na realidade, o processo industrial em curso nos EUA exigia a abertura do país a mão-de-obra imigrante e também rapidamente lhes proporcionou o conforto e os benefícios da sociedade de bem-estar norte-americana. Ao mesmo tempo, trouxeram com eles uma vontade inquebrantável de perpetuar usos e costumes do seu país de origem. Sobretudo as celebrações religiosas seguem o mesmo rigor e o mesmo ou maior fervor do que aquele que se vive em Portugal.

Mais do que nunca, os EUA constituem um mosaico de culturas que se afirmam sem se excluírem. À ‘ideia de América’ que todos os imigrantes abraçam com inegável sucesso, sobrepõe-se a necessidade de afirmação da respectiva etnia ou background cultural.

Nos EUA, somos insistentemente convidados a identificar-nos com algum tipo de background. A eleição dos congressistas norte-americanos reflecte directamente essa realidade incontornável da política de base étnica nos EUA. Tal como outros grupos, também os luso-americanos têm vindo a mobilizar-se para assegurar a eleição de políticos de ascendência portuguesa. O que é na realidade muito importante.

Mas, sobretudo aos filhos dos imigrantes portugueses – a chamada segunda geração – que cabe realizar essas sínteses entre tradição e progresso. Muitos fazem-no com assinalável sucesso, enquanto outros não deixarão de soçobrar ao choque cultural demasiado radical para poder ser ultrapassado sem prejuízo da sua identidade. Cabe-nos a todos.
Também, hoje, como sempre, vivemos numa sociedade movida por influências, talvez mais sofisticada e organizada do que outrora. Quem não souber organizar-se não terá influência sobre os processos que podem afectar a sua existência, os seus direitos ou a sua identidade. Isto é muito importante.

A fase da assimilação dos imigrantes acabou. Ao invés, a integração que hoje se preconiza não os priva das suas especificidades, indentitárias e culturais e isso é muito visível na sociedade norte-americana.

Como consequência, nesta América de grupos e etnias, o primeiro desafio para a comunidade luso-americana será o de se auto promover. É a nossa tradição cultivar a modéstia e a contenção, mas essas virtudes não têm merecimento em todos os contextos. Nos EUA, têm tido o efeito de nos tornar invisíveis e, como tal, alheios aos circuitos de influência que tornam grupos e comunidades poderosas e respeitadas.

A promoção da nossa comunidade, que considero prioritária na minha tarefa de Cônsul, terá de ser prosseguida designadamente por duas vias essenciais:
Em primeiro lugar, através da Educação. É essencial que a educação seja um objectivo prioritário desde cedo interiorizado pelas gerações mais jovens. Já o é em Portugal e também em grande medida nas comunidades luso-americanas. Os custos do ensino superior nos EUA são elevadíssimos, pelo que o incentivo familiar e da comunidade portuguesa no seu conjunto é fundamental. Felizmente, as iniciativas de angariação de fundos para esse fim multiplicam-se no seio das nossas comunidades. A concorrência no mundo profissional norte-americano é avassaladora, um bom currículo académico e extracurricular são muitas vezes condição para um bom emprego que venha a compensar o investimento.

Em segundo lugar – e não menos importante – está a cultura. A afirmação da nossa comunidade terá necessariamente de passar pela valorização da cultura portuguesa e de Portugal nos EUA, que, em certos meios, sofre ainda – temos de admitir – de uma imagem desactualizada de “país rural e pobre”.

Aqui reside a principal prioridade em que nos temos empenhado, comunidade e consulado português em Boston: surpreender os incrédulos e aqueles que desconhecem Portugal e a sua cultura centenária.

Não e por acaso que, por exemplo, na Universidade de Harvard, no MIT ou no Museum of Fine Arts – ou seja, nas instituições mais prestigiadas de Boston – as nossas propostas são acolhidas sem resistências ou preconceitos. E a explicação parece simples: são locais de excelência onde os melhores académicos e intelectuais conhecem os seus pares em todo o mundo e também em Portugal. Os portugueses estão, por exemplo, entre os melhores arquitectos no mundo ou entre os melhores cineastas da
Europa ou vários cientistas portugueses de grande valor transferiram-se (infelizmente para nós) para os EUA. E os melhores nos EUA reconhecem-no sem preconceitos.

Na realidade, quanto mais mundo conheço, mais se torna o meu respeito e admiração por Portugal. Desde que passei pela Ásia que sinto uma responsabilidade acrescida de ser português e de trabalhar por fazer justiça a herança de respeito e de dignidade que os portugueses de quinhentos deixaram pelo mundo. A diáspora portuguesa começou com eles e sinto o dever pessoal e profissional de tudo fazer para honrar essa herança.
Nos EUA, no Canadá ou em qualquer local do mundo, são os portugueses da diáspora que terão a responsabilidade de ser Portugal fora de Portugal.

Portugal não é uma entidade abstracta mas sobretudo um povo que em cada tempo e em cada lugar soube e saberá deixar a sua marca e o seu contributo específico para a história da humanidade.

Portugal é um país quase milenar, há vinte anos aderiu às CE’s tendo vindo a participar em todos os ambiciosos projectos de integração realizados no seio desta grande família que é a União Europeia. Em Massachusetts, cerca de 7% da população reclama ascendência portuguesa. Anualmente, dezenas de estudantes portugueses criteriosamente seleccionados vem especializar-se nas reputadas universidades de Boston. Portugal tem demonstrado estar à altura de ambiciosos projectos e desafios que o têm prestigiado mundialmente.

No entanto, o desconhecimento sobre a actual realidade portuguesa traduz-se, infelizmente, na persistência de estereótipos desajustados sobre o nosso país.
Em Boston, paradoxalmente num Estado com uma significativa comunidade portuguesa, o desconhecimento sobre Portugal – Portugal moderno – é ainda visível e terá de ser combatido. E para cada problema a sua solução. Neste caso não há qualquer segredo mas soluções antigas e com provas dadas: será necessário levar cada vez mais americanos e cada vez mais luso-americanos a Portugal.

Mas como poderemos mostrar Portugal a americanos ou canadianos quando as ligações directas aéreas regulares com os Açores ou com o continente nem chegam para dar resposta às necessidades das comunidades portuguesas?

Resta-nos trazer a montanha a Maomé, ou seja, trazer a realidade portuguesa aos EUA, a Massachusetts, para conhecimento das suas populações, através de manifestações e iniciativas culturais representativas do nosso país actual, moderno e das suas renovadas tradições.

Neste particular, e como forma de combater esse desconhecimento, o Consulado e a comunidade portuguesa da área de Boston vão realizar este ano pela primeira vez o Boston Portuguese Festival. Trata-se de um conjunto de iniciativas representativas das componentes mais relevantes da cultura e da realidade portuguesa (designadamente música, literatura, cinema, gastronomia, herança portuguesa ou ciência e tecnologia) para marcar a nossa presença e o nosso contributo na intensa agenda cultural de Boston.

É difícil começar novas iniciativas, abrir portas para um projecto ainda desconhecido, o esforço inicial é muito maior do que à partida poderia prever, mas o entusiasmo e a confiança que tem suscitado junto de tantas pessoas da nossa comunidade leva-nos a antecipar que terá valido a pena este grande esforço para colocarmos a cultura portuguesa no mapa cultural de Boston.
Neste contexto, também um breve para a língua portuguesa. A língua portuguesa é porventura a face mais visível da nossa cultura e da nossa identidade da diáspora. Há quem vaticine o seu desaparecimento com o virar das gerações. Não é essa a percepção com que fico depois de um ano em Boston.

No estado de Massachusetts contam-se mais de 6000 estudantes de português no ensino secundário oficial, ou seja, mais de metade do total dos alunos de português nos EUA. O estatuto da língua portuguesa nos EUA ainda não se encontra no nível que desejamos, sobretudo quando o comparamos com o de outras línguas até de menor expressão no mundo, mas há sinais muito encorajadores que nos permitem antever um crescente interesse pela sua aprendizagem. O facto de o inglês se ter vindo a instalar como a língua de comunicação internacional conduz inevitavelmente à subalternização de muitas outras línguas nos contactos internacionais. Mas, para além do inglês, outras línguas irão sobreviver em função da sua importância regional e a língua portuguesa terá seguramente esse papel assegurado na América Latina e na África.

Os EUA já compreenderam essa realidade e a importância do seu parceiro lusófono na América do Sul, o Brasil. A língua portuguesa terá ainda o seu caminho a percorrer nos EUA, um pouco na esteira do que sucedeu com o espanhol. Mas o tempo funcionará a favor da importância crescente do Português, também por isso temos que transmitir essa herança aos nossos filhos e aos nossos netos.

Não é apenas uma questão de cultura e identidade. É também mais uma competência que poderão acrescentar aos seus currículos profissionais e que poderá – quem sabe – revelar-se na decisiva na obtenção de um bom emprego. E temos bons exemplos disso.

Finalmente, uma palavra sobre as expectativas que temos para o futuro, o tal “progresso”que o tema deste congresso sugere. O mundo é cada vez mais uma corrida tecnológica. Os produtos tradicionais deixaram de ser determinantes na configuração das economias mais avançadas. EUA e Canadá por exemplo fazem parte dessa corrida e os jovens das nossas comunidades terão de juntar-se a ela.

Na realidade, Massachusetts e a sua capital acolhem um dos mais reputados centros de investigação científica e tecnológica do mundo, designadamente nas áreas da biomedicina e da biotecnologia. A título de exemplo, cerca de 400 empresas neste Estado norte-americano foram criadas em resultado de transferências de tecnologia proporcionadas pelo MIT. Boston constitui, nessa medida, um laboratório privilegiado para muitos produtos que estarão nos mercados mais exigentes nos próximos anos. É neste ambiente de grande exigência que os nossos jovens – sobretudo a segunda geração – são confrontados. Apanhados entre dois pólos: a tradição e o progresso, terão de saber deles extrair a síntese necessária e feliz, mas a natureza humana tem capacidades insuspeitáveis de adaptação a novas situações.

Este é também o maior desafio do Consulado em Boston, que terá de trabalhar nessa perspectiva, com a consciência de que é uma tarefa de longo prazo que requer persistência e determinação. O bem-estar e prestígio das nossas comunidades exige que se mantenham ligadas às tradições e simultaneamente que não fiquem alheias ao progresso.

O progresso torna os países e os povos respeitados, até mesmo temidos. Tem sido assim ao longo dos séculos. Mas não há progresso que tenha marcado a história da humanidade que não esteja associado a uma cultura. Uma cultura sem a qual o progresso não teria sido possível.

Por isso, num mundo cada vez mais competitivo temos que agir com realismo e sensatez mas, ao mesmo tempo, temos que ter ambição, ousadia, imaginação e sobretudo muita determinação para dar o nosso contributo aí onde o progresso se realiza e simultaneamente fazer com que esse contributo traga a marca da nossa cultura específica que soubemos transportar através do Atlântico. Como escrevia recentemente José Gil “a cultura é o que os leva a pertencer a uma terra e a entrar em comércio com os deuses”. É uma definição bonita, de alcance antropológico Na realidade, é a cultura que nos define como homens, como comunidade e que nos permite transcender a nossa própria condição humana.

Em suma, ‘tradição e progresso’são faces da mesma moeda que a cultura cunhou num metal precioso para podermos entrar em comércio com os deuses.
Muito obrigada.”