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Permitam-me que contextualize as palavras que se seguem com uma
breve nota pessoal. A primeira vez que falei com Mário Mesquita
foi nos fins de 70, quando dele recebi um telefonema na Califórnia
a convidar-me – por forte sugestão do nosso comum amigo Onésimo
T. Almeida - para ser correspondente do Diário de Notícias
(Lisboa), cuja direcção ele tinha assumido há relativamente pouco
tempo. Mesmo na distância à beira do Pacífico, eu conhecia já
então suficientemente o seu trabalho e a sua estatura profissional
no nosso país, para que, durante alguns segundos, eu duvidasse
se era eu ou não quem de facto acabava de receber tão honroso
convite. Para mais, as palavras diáspora e emigração
despertavam em Lisboa muito pouco interesse, a não ser nos discursos
pontuais do 10 de Junho ou nas visitas ocasionais que um qualquer
político efectuasse às nossas comunidades.
O pedido de Mário, a sua vontade editorial, por assim dizer,
era simples e integrava-se perfeitamente nos meus interesses jornalísticos
de então: Explique tudo aos nossos leitores, dizia-me, sobre as
nossas comunidades na América, e já agora, explique aos nossos
leitores tudo sobre a Califórnia.
Estávamos longe dos dias em que laconicamente um qualquer
jornalista lisboeta falava dos seus “amigos nova-iorquinos” ou
de festas fúteis na fantasmagórica Hollywood, cidade mesmo ali
ao lado da minha vivência quotidiana, de que eu e outros amigos
nos gabávamos de nunca visitar. Em breve, no entanto, Mário dar-me-ia
toda a liberdade de escrever sobre o que eu achasse de interesse
para os leitores do jornal, incluindo crítica literária e cultural
norte-americana. De um concerto dos Rolling Stones em Los
Angeles a uma visita de rotina de João Bosco Mota Amaral, eu tentava
dar conta da longínqua vida multi-étnica e multicultural no mítico
Eldorado a oeste de todos os nossos sonhos aqui nas ilhas.
Um pouco mais tarde eu visitava Lisboa, e pela primeira vez entrei
no Diário de Notícias, com toda a timidez de um açoriano
a sofrer mais um choque cultural no seu próprio país, admissivelmente
nervoso por ir falar em pessoa com o director de um grande e prestigiado
diário nacional, e que me havia dado tamanha oportunidade. Já
não me restavam quaisquer dúvidas sobre a sua abertura intelectual,
mas ao entrar pela primeira vez no seu gabinete fiquei muito mais
tranquilo, pois deparei com o Mário desengravatado a ouvir
deliciado uma entrevista da rádio com uma luso-americana
que estava de passagem por Lisboa na companhia da rainha
das festas de San Diego, essa colorida celebração que ainda continua
a comemorar todos os anos a chegada à Califórnia de João Rodrigues
Cabrilho, o navegador português ao serviço de Espanha, e o primeiro
europeu a avistar aquelas terras no século XVI. A nossa conhecida
activista comunitária falava livremente, com o seu forte sotaque
luso-americano, e com toda a descontracção da sua cultura californiana
e desenvolto modo de ser pessoal. Para mim, era mais uma prova
de que Mário estava atento a todo o seu mundo português, sem os
preconceitos que, muito provavelmente, ainda hoje limitam muito
do nosso pensamento acerca da reconstrução de uma pátria em busca
de nova identidade e reinvenção estruturante de todo o seu próprio
imaginário. Como atestam pelo menos um dos seus livros anteriores
à obra presente, quer em editoriais do Diário de Notícias
quer noutras ocasiões e espaços, Mário Mesquita sempre “combateu”
este “provincianismo” português, particularmente no que às ilhas
diz respeito: o tratamento na imprensa nacional que a política
e cultura merecem, ou melhor dito, desmerecem.
Com efeito, a sua reflexão sobre o jornalismo e os media
em geral, lado a lado com a prática do mesmo, principalmente desde
o jornal República, é já de longa data e consistente. Publicou
em livro uma boa parte das suas principais intervenções, quer
como repórter e editorialista, quer como estudioso de todo fenómeno
comunicacional nas sociedades contemporâneas. Deve & Haver,
A Regra da Instabilidade,
O 25 de Abril nos Media Internacionais,
com José Rebelo, e O Jornalismo Em Análise: A Coluna do
Provedor dos Leitores
são alguns desses títulos, para além de muitos outros trabalhos
de cariz mais teórico, agora quase todos reunidos na obra presente.
Em todos eles sobressai essa desusada capacidade de penetração
nos textos e nas situações que os inspiram, sobressai a sociedade,
ela própria, em todas as suas fases ou versões político-culturais,
como texto aberto e não como realidade monolítica canonicamente
interpretada e intelectualmente arrumada. A sua desconstrução
tanto tem de impiedosa como de elegante, o estilo denunciando
ou sendo o homem: ao lê-lo como que ouvimos a voz serena do articulista,
conferencista ou professor irónico e socrático, a levar uns e
outros não necessariamente a partilhar os seus pontos de vista
e opiniões mas, sim, a levar os seus leitores ou ouvintes aos
corredores de realidades espartilhadas e distorcidas num jogo
de espelhos, que ora reflectem uma dimensão ora outra da nossa
existência, ora nos devolvem a multiplicidade de imagens com que
os media nos vêem e efectivamente nos representam. Como Provedor
dos Leitores do Diário de Notícias sistematizou o que sempre
foi evidente em todos os seus outros textos: a capacidade de perceber
simultaneamente o lugar do enunciador e do receptor de notícias,
comentários ou análises jornalísticas.
Será, possivelmente, considerado excessivo o espaço -
escreve em A Regra da Instabilidade, respondendo a certas
atitudes de alguns quanto a uma determinada faceta da sua actuação
e escrita no Diário de Notícias, que então dirigia –
dedicado à problemática açoriana. Não vou justificar-me com a
pobreza – a roçar a indigência – da Imprensa continental ou da
Universidade Portuguesa, no tratamento das questões insulares.
De livre vontade confesso falta de isenção na matéria, por uso
e abuso de provincianismo ilhéu, provocatoriamente cultivado para
irritação do pedantismo lisboeta e congéneres.
O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na Sociedade Contemporânea,
este riquíssimo livro de teorização e prática jornalística portuguesa
nos nossos dias, inserida pelo autor em praticamente todos os
seus ensaios no vasto mosaico mundial que é o fenómeno da comunicação
e jornalismo transfronteiriços nos nossos dias, pode e deve ser
lido também à luz dessa incomparável maneira de ser e estar,
dessa, entre nós, total abertura ante os seus diversos mundos
lusos, desde os Açores a Lisboa até às nossas comunidades, que
ele reconheceu, primeiro do que muitos no jornalismo português,
dando espaço tão abrangente à voz a que todo um povo tem direito,
o reconhecimento público que dignifica e abre uma porta de pertença
na nossa historicamente “casa comum”, apesar da distância e da
desterretorialização de que nos fala Édouard Glissant em
temas literários (a poética da relação), também pertinentes
para a lusofonia. Toda a escrita acaba por ser mais ou menos autobiográfica,
retratando, senão factos vividos, o percurso, digamos que imaginativo,
do seu autor, estrutura num só discurso a experiência e práticas
pessoais com o pensamento puramente teórico do seu autor. O
Quarto Equívoco não só insinua essa caminhada profissional
única entre os jornalistas portugueses e respectivos estudiosos,
como se referencia num vasto leque de pensadores teóricos das
mais díspares latitudes e tradições, os que tentam perceber como
o jornalismo (na sua longa história, a partir do século dezassete),
e as modernas comunicações se tornam, paradigmaticamente, num
espelho-outro tanto de sociedades totalitárias como democráticas.
Efectivamente, ler O Quarto Equívoco é ainda tornar-nos
conscientes de como todo o discurso público actual interliga política
e ideologias, arte erudita e popular, literatura e cinema, constrói
e desconstrói figuras, ideias e projectos, inventa centros e define
margens, hierarquiza grupos societais, interliga o puro espectáculo
inconsequente com as mais dramáticas ocasiões vividas num país
ou entre nações. Privilegiando os teóricos, escritores e, até,
cinematógrafos anglo-americanos, francófonos e portugueses, Mário
Mesquita desenha-nos um complexo mosaico de jornalismo, cultura
e cidadania nas sociedades mais tecnológica e economicamente desenvolvidas.
O seu conhecimento dos estudos da comunicação e do jornalismo
nos Estados Unidos é verdadeiramente enciclopédico, assim como
é o seu relacionamento intelectual com a França (e, em termos
menos expansivos, ao que parece, ou no que sobressai neste seu
livro, com a Grã-Bretanha). Por minha parte, como leitor, passe
a expressão, activo e interessado destes ensaios, nem deixei
de sublinhar as generosas notas de rodapé num acto de actualização
de saberes culturais cruzados ou interdisciplinares, referentes
especialmente ao país que também é o meu, e sobre o qual me considero
razoavelmente bem informado, os Estados Unidos. Refazer com o
autor uma leitura aqui, por exemplo, dos filmes Fury de
Fritz Lang, Citizen Kane de Orson Wells e Zelig
de Woody Allen, esses que dramática e/ou parodicamente revêem
a grande imprensa na sociedade do seu tempo, é de facto também
adquirir outras perspectivas para a própria revisitação literária
de textos ficcionais e culturais semelhantes.
Dividido por longos capítulos que se intitulam “Actualidades”,
“Poderes”, “Perspectivas” “Deontologias” e “Cerimoniais”, cruzamo-nos
de página em página com as questões que formam e enformam todo
o debate presente em volta do jornalismo e múltiplos sectores
da comunicação nas sociedades pós-modernas da nossa época. Da
reflexão da prática e ensino destes temas - em que o autor tem
já uma vasta, reconhecida e profunda experiência a vários níveis
- do confronto entre teorias totalizantes ou desconstrucionistas
e olhares mais prosaicos, Mário Mesquita leva o leitor a repensar
todo e qualquer gesto e aproximação aos meios de informação -
ou desinformação - responsáveis por todo o discurso público nacional
e internacional dos nossos tempos, e conforme as manipulações
dos mais variados poderes societais num determinado momento. Em
suma, eis aqui o jornalismo histórico e actual vistos frequentemente
em relação a outros géneros mais próximos, como a literatura,
eis aqui os seus praticantes de diferentes escalões, desde o escritor-jornalista
ao jornalista-de-agenda ou necrologia, levando frequentemente
o leitor de O Quarto Equívoco a um outro, ou novo, entendimento
tanto da “beleza”, digamos, como da rude e irremediável efemeridade
de um texto periodista. O andamento da escrita de Mário Mesquita
entre teoria e prática, entre opiniões, repita-se, dos mais reconhecidos
teóricos mundiais da comunicação e jornalismo, entre a historicidade
e actualidade do género, entre este e as outras artes, está vivamente
caracterizado por uma dialéctica da abertura e tolerância, ou
mesmo firme rejeição e aceitação na multiplicidade de textos e
“cerimoniais” da comunicação dirigida a nós todos, em qualquer
geografia ou espaço linguístico-cultural.
As ligações entre jornalismo e literatura - escreve no
ensaio “Do Ensino ao Exercício Profissional” - não se limitam
à questão estilística. O jornalista é encarado como alguém que
conta estórias. Afirmar a narratividade de algum texto
jornalístico informativo significa admitir que as notícias correspondem
a uma realidade construída de acordo com uma lógica interna própria,
que se manifesta ao nível do conteúdo e da estrutura externa.
(...) A estrutura narrativa das notícias aproxima o jornalismo
da literatura, mas a pretensão explicativa leva-o a situar-se
numa zona contígua às ciências sociais e à história. Esta oscilação
é fautora de tensões: ‘há no jornalismo tantos profissionais defensores
da prioridade à exactidão como adeptos da beleza na expressão’.
Serão poucos os praticantes e estudiosos do jornalismo e da comunicação
em Portugal que, como Mário Mesquita, têm essa postura descomplexada
ante o rico legado histórico e intelectual de todo o mundo português,
nas suas recortadas geografias. Dois ensaios ou estudos de O
Quarto Equívoco, creio, clarificam essa habilidade e disponibilidade
de nunca esquecer ou simplesmente ignorar o que de melhor se tem
feito entre nós e entre os outros. Os ensaios “As Tendências Comunitárias
no Jornalismo Cívico” e “A Deontologia do Jornalismo como Antecipação
ao Direito” são-me, directa ou indirectamente, particularmente
caros, pelo que de outras ou insinuadas referências contêm, regressando
aqui à breve introdução deste meu texto, ou ainda pelo modo como
definem algumas das suas preocupações e saberes no que aos açorianos
e aos imigrantes dizem respeito, adentro do nosso jornalismo cá
e além fronteiras. O primeiro, sobre o jornalismo cívico,
vem significativamente dedicado “A Gustavo Moura” e “Aos meus amigos do Fórum Açoriano”. Nem o jornalista Gustavo
Moura nem o Fórum Açoriano necessitam de apresentação entre nós.
Estou em crer, no entanto, que o implícito significado deste “gesto”
do autor não nos pode passar despercebido. Nem cabe tão-pouco
neste espaço explicar do que se trata quando se fala de jornalismo
cívico, pois Mário fá-lo melhor do que ninguém. Muito antes
deste movimento na imprensa americana durante a última década
do século passado, em que o incentivo à militância cívica é crucial
nessas páginas, o autor de O Quarto Equívoco já tudo isso
reconhecia nalguns dos nossos jornais da imigração, e suponho
que nos do próprio arquipélago: a consciência de que o jornalismo
nas pequenas comunidades é essencialmente a exortação ao envolvimento
do cidadão na vida pública. Toda a crítica e elogios de Mário
Mesquita vêm empaticamente do interior do mundo da informação
e comunicação, nunca deixando ele de chamar a atenção para os
perigos desse compromisso programático no jornalismo cívico,
mas reconhece-o como uma resposta legítima à alienação e indiferença
dos cidadãos perante a política tradicional e aparelhística. Ressalva,
neste como em muitos outros textos de O Quarto Equívoco,
o imperativo do distanciamento, ou a sempre muito discutida objectividade
jornalística, o que me parece de todo prudente, pois cair
na fulanização é um dos perigos que sempre espreitaram e espreitam,
hoje mais do que nunca, na nossa imprensa regional ou de imigração,
dado que, em minha opinião, uma e outra são praticamente indiferenciáveis
nas suas tradições e nos seus objectivos editoriais. Essa objectividade
jornalística – se totalmente inatingível - deverá permanecer
pelo menos como uma plataforma ética, visando e avisando cada
um da essencialidade do maior equilíbrio possível em qualquer
texto quanto às questões e pessoas aí abordadas. Cada jornalista
traz para o texto, como aponta repetidamente Mário Mesquita, toda
a subjectividade da sua ideologia e formação profissional e académica.
A preocupação do movimento do jornalismo cívico em reavivar
o conceito e as práticas da cidadania, - escreve Mário Mesquita
no referido estudo – a sua preocupação crítica das formas
de futilização da política adoptadas por certos media, o aprofundamento
da ligação entre os jornalistas e os cidadãos comuns são aspectos
que conferem relevância a esta tentativa de reformular o perfil
do jornalista e as práticas jornalísticas.
O projecto do jornalismo cívivo - continua ainda o autor
de O Quarto Equívoco - representa uma tentativa ambiciosa para
repensar globalmente o ‘campo jornalístico’. Se a preocupação
com a cidadania que preside ao seu aparecimento concita um conceito
quase generalizado, não se pode afirmar o mesmo acerca de algumas
outras características.
Numa breve síntese, as principais objecções ao jornalismo
cívico respeitam ao desenho de um novo perfil de jornalista-participante,
em prejuízo da atitude clássica do jornalista-observador;
ao abandono das concepções tradicionais de distanciamento jornalístico,
em benefício da defesa de causas comunitárias, correndo o risco
de alinhamento explícito de jornais e jornalistas ao lado de determinadas
correntes políticas (...).
O Quarto Equívoco - que não o “quarto poder”, de que
há muito se fala, e que me parece Mário Mesquita entender hoje
como constituindo uma miríade de fragmentados discursos públicos,
em formas e até géneros de informação e comunicação muito diferentes,
e por vezes antagónicos entre si, para que lhe possamos atribuir
esse papel “parlamentar” não eleito em sociedades abertas –
dirige-se a estas e a muitas questões e temas presentes nos
media do mundo actual. Esta disponibilidade para interligar
e, mais ainda, questionar e problematizar um tão alargado debate,
principalmente nas sociedades (Portugal, Estados Unidos e França,
em primeiro plano) que lhe oferecem as mais diversificadas referências
no campo jornalístico e das comunicações em geral, apresenta
agora ao eventual leitor ou estudioso das mesmas questões uma
prodigiosa fonte de nomes, obras e casos. Do mesmo modo, a abertura
com que tanto olha nestas mesmas páginas da obra presente para
os mais conhecidos jornais (ainda) de referência nacionais e
internacionais como nos chama a atenção para outros de menor
dimensão e dirigidos a públicos mais reduzidos numericamente
e de influência local ou regional, só será possível num autor
com uma especial formação prática e académica, capaz de integrar
numa espécie rara de democraticidade (sem nivelamentos por baixo)
o exercício contínuo da sua profissão nos melhores jornais do
nosso país e, concomitantemente, a teorização e ensino do complexo
labirinto textual e audiovisual de onde emanam e em que se enquadram
os infindáveis discursos públicos e institucionais da nossa
época. Duvido que, em Portugal, exista muitos mais estudiosos
da imprensa e dos media tão profundamente atentos aos vários
escalões das nossas publicações, capazes de citar um trabalho
da autoria do jornalista e escritor micaelense Manuel Ferreira
sobre como o jornal regional Açoriano Oriental foi o
primeiro, em 1835, a elaborar e a publicar um estatuto deontológico
(a que chamaram de Prospecto), que ainda hoje, afirma
Mário Mesquita, deve servir de referência a qualquer publicação
nacional, séria e referencial.
Numa troca de impressões via net com Onésimo T. Almeida
acerca de O Quarto Equívoco, (ele próprio um reconhecido
mestre da crónica jornalística na nossa imprensa nacional
e da imigração, e um leitor atento desde sempre de toda a obra
de Mário Mesquita), recebi dele a certa altura um parágrafo
em forma de carta, que não resisto a reproduzir neste preciso
espaço e momento, por constituir uma outra síntese lapidar de
todas as questões que aqui abordei, e ainda algo mais:
Mário Mesquita é um caso singular na comunicação portuguesa
por conseguir estabelecer diálogo com diversas áreas do saber,
mas mantendo sempre um centro que é a problemática social e política
da comunicação. O saber enciclopédico que ressalta deste seu livro
não tem qualquer relação com os aparatos eruditos que com tanta
frequência se encontram em obras deste género. Mário Mesquita
passa cada livro ou ensaio que cita, cada ideia que comenta, pelo
crivo crítico de um olhar atento elevando (ou aprofundando) mais
longe do que ninguém em Portugal a reflexão sobre a comunicação
social. Mas há uma outra faceta ainda dessa sua versatilidade:
Mário Mesquita tem veia de escritor, como o revelam abundantemente
as suas crónicas. Daí resulta que qualquer reflexão teórica que
desenvolve consiga manter exemplarmente a marca do escritor tornando
assim esta volumosa colectânea de ensaios num prazer de leitura.
Hoje, sei de igual modo que muito poucos entre nós e na direcção
de um jornal como o Diário de Notícias teria sequer pensado
há tantos anos na “necessidade” de colocar em campo um correspondente
na então longínqua Califórnia, com a expressa missão de explicar
aos leitores nacionais daquele jornal a vida pública e histórica
da imigração açoriana aí fixada. Este livro de Mário Mesquita,
para além de todo o mais que significa, explica essa particular
ética e visão muito especiais entre nós. Depois de qualquer
leitura atenta de O Quarto Equívoco ninguém olhará e
entenderá do mesmo modo o nosso mundo da informação jornalística
e do espectáculo “cerimonial” - como lhe chama o autor
num dos seus capítulos - ou degradante presente em todos os
outros meios de comunicação, nacionais ou estrangeiros. Da bruma
(ou negrume) presente, também é essa uma outra mensagem eloquente
deste livro, estão pungentemente em campo, a nível nacional
e regional, os outros, os que representam diariamente
a dignidade jornalística, os que carregam a palavra mais ou
menos objectiva e da retórica político-ideológica com as semânticas
da dignidade cívica, política e cultural. ▼
Mário Mesquita, O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na
Sociedade Contemporânea, Coimbra, MinervaCoimbra, 2003.
Pouco mais tarde, as palavras “imigração” e “emigração”
quase seriam banidas por completo dos discursos portugueses oficiais
e oficializados, pois passaram a ser termos mais ou menos pejorativos,
no pensamento político do país de origem, que “denegriam” a ideia
de “comunidades”. Escrevi então no Diário de Notícias que
se tratava de mais um preconceito português em relação aos i/emigrantes.
Por outro lado, na cultura norte-americana, especialmente na literatura
e no cinema, os mesmos termos eram historicamente usados para
significar, quase sempre, a epopeia dos que abandonaram a sua
terra natal para se fixarem noutra, e aí reinventar, por vezes
heroicamente, toda a sua vida. Os próprios e/imigrantes portugueses
nos Estados Unidos nunca haviam manifestado qualquer sentido de
inferioridade quando referidos através dessa terminologia. “Se
não me engano, - escrevi então num artigo publicado no Portuguese
Times a 11.11.1990 – é a segunda vez que a genial ideia comove
aqueles que, em Lisboa, estão ligados aos assuntos da nossa Emigração.
Querem banir do nosso vocabulário as palavras que descrevem a
nossa realidade sócio-histórica. Ao que parece, emigração,
emigrantes/imigrantes significam miséria, ou qualquer
condição vergonhosa para o Estado português. A secretaria de Estado
das Comunidades e o primeiro-ministro Cavaco Silva estão convencidos
de que a nossa realidade é já muito diferente de tudo isso. (...)
A simbologia arrivista dos nossos dias tem muito que se lhe diga.
Só que mais cedo ou mais tarde a realidade bate à porta – ficamos
nós e vão-se as bonitas frases ou símbolos. Mas desta tendência
portuguesa para a retórica vazia já se queixava Eça de Queirós,
quando dizia que entre nós era, mais ou menos, o salvar a palavra
e lixar a ideia. Ora, na nossa evolução do momento vamos um pouco
mais além - lixe-se a palavra, e a ideia também.” (in Vamberto
Freitas, Para Cada Amanhã: Jornal de Emigrante III, Lisboa,
Edições Salamandra, 1993, p. 36).
Eu acabaria muito em breve por propor outros trabalhos, que
seriam sempre aceites por Mário Mesquita, e mais tarde pelos directores
do DN que lhe seguiram. Escreveria especialmente sobre
literatura e cultura norte-americanas, tanto na secção principal
do jornal como no extinto suplemento Cultura. Ainda mesmo
a partir da Califórnia, escrevi extensamente sobre Literatura
Açoriana, tendo quase todos esses trabalhos sido reunidos n’ O
Imaginário dos Escritores Açorianos (Lisboa, Salamandra, 1992).
O convite inicial de Mário Mesquita acabou me abrir vários mundos,
que até então me pareciam e estavam bem distantes, se não perdidos.
Passei a incluir nessa correspondência e colaboração no Cultura
crítica das obras não só de autores anglo-americanos e afro-americanos
mais ou menos canónicos, como de outros escritores “étnicos” ou
“imigrantes” (Amy Tan e Bharati Mukherjee, por exemplo) dos Estados
Unidos. Pensava e penso que a experiência imigrante destes
e doutros escritores era também como que um reflexo da vivência
das nossas próprias comunidades. Tiraria daí América: Entre
a Realidade e a Ficção Jornal da Emigração IV (Lisboa, Salamandra,
1994).
Trata-se de Mary Giglitto, (de descendência açoriana, das
ilhas centrais), uma conhecida activista comunitária na Califórnia,
mais propriamente na cidade de San Diego. A rainha das festas
comemorativas da “descoberta” da Califórnia visitava Portugal
todos os anos e era (creio que esse “ritual” ainda se mantém)
recebida pelas mais altas instâncias polítcas e de Estado, incluindo
o Presidente da República.
Mário Mesquita, Deve & Haver, Lisboa, Distri Editora,
1984.
_____________, A Regra da Instabilidade, Lisboa, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, 1987.
Mário Mesquita e José Rebelo (Orgs.), O 25 de Abril nos
Media Internacionais, Lisboa, 1994.
Mário Mesquita, O Jornalismo em Análise: A Coluna do Provedor
dos Leitores, Coimbra, Minerva Coimbra, 1998.
Mário Mesquita, A Regra da Instabilidade, p. 18.
Na altura escrevi um artigo crítico para o Diário de Notícias
sobre o filme Broadcast News, que também trata o mundo
dos media dos Estados Unidos. O seu impacto público na “desconstrução”
cómica e irónica, quase verrinosa, dos telejornais das grandes
cadeias televisivas norte-americanas foi de tal ordem, que levaria
a revista Newsweek a dedicar-lhe uma das suas capas. Escrevi:
“Esse inapagável fascínio do grande público pelo jornalismo transfigurado
foi sempre, por outro lado, um facto de duvidoso orgulho para
os profissionais da informação. É claro que qualquer grupo societal
gostará de ver a sua imagem ampliada, mitificada, tornada curiosidade,
e que, como neste caso, leve à fundação de escolas especializadas
e a sonhos de alguns de um dia pertencerem à casta. Poucas profissões
modernas estarão tão submersas em fantasia e romantismo, para
os que olham de fora, como o jornalismo. Mas, paralelamente, a
maioria das obras, cinema ou livros, sobre tudo isso é motivada
em geral pela desconfiança e outras noções, justificadas ou não,
de que nem toda a verdade está a ser dita por aqueles que outra
função não têm senão transmiti-la a todos. Reconhecido como guerreiro
na linha da frente contra as forças obscuras deste nosso mundo,
All The President's Men (livro e filme), no entanto, foi
uma das raras excepções dos nossos dias, em que o jornalista apareceu
como herói limpo. (“Broadcast News: Jornalismo e Amor na América”,
in Vamberto Freitas, Jornal da Emigração: A lUSAlândia Reinventada,
Angra do Heroísmo, Gabinete da Emigração e Apoio às Comunidades,
1990, p. 44.).
O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na Sociedade Contemporânea,
p.188.
Para além de uma amizade de longa data com o autor de O
Quarto Equívoco, Gustavo Moura foi director durante muitos
anos do Açoriano Oriental, jornal em que Mário Mesquita
colaborou durante alguns 15 anos, transferindo mais tarde a sua
coluna semanal para o Correio dos Açores, também de Ponta
Delgada, onde ainda hoje a mantém. Mário Mesquita leu “As Tendências
Comunitaristas no Jornalismo Cívico” numa homenagem a Gustavo
Moura promovida pelo Fórum Açoriano, na Câmara Municpal de Ponta
Delgada, a 9 de Dezembro de 2000.
O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na Sociedade Contemporânea,
p. 67.
Correspondência recebida a 26.11. 2003. É reproduzida aqui
com a autorização do seu autor.
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