VAMBERTO FREITAS - De Màrio Mesquita e de o
Quarto Equívoco
[1]


Permitam-me que contextualize as palavras que se seguem com uma breve nota pessoal. A primeira vez que falei com Mário Mesquita foi nos fins de 70, quando dele recebi um telefonema na Califórnia a convidar-me – por forte sugestão do nosso comum amigo Onésimo T. Almeida - para ser correspondente do Diário de Notícias (Lisboa), cuja direcção ele tinha assumido há relativamente pouco tempo. Mesmo na distância à beira do Pacífico, eu conhecia já então suficientemente o seu trabalho e a sua estatura profissional no nosso país, para que, durante alguns segundos, eu duvidasse se era eu ou não quem de facto acabava de receber tão honroso convite. Para mais, as palavras diáspora e emigração despertavam em Lisboa muito pouco interesse, a não ser nos discursos pontuais do 10 de Junho ou nas visitas ocasionais que um qualquer político efectuasse às nossas comunidades.[2] O pedido de Mário, a sua vontade editorial, por assim dizer, era simples e integrava-se perfeitamente nos meus interesses jornalísticos de então: Explique tudo aos nossos leitores, dizia-me, sobre as nossas comunidades na América, e já agora, explique aos nossos leitores tudo sobre a Califórnia.[3] Estávamos longe dos dias em que laconicamente um qualquer jornalista lisboeta falava dos seus “amigos nova-iorquinos” ou de festas fúteis na fantasmagórica Hollywood, cidade mesmo ali ao lado da minha vivência quotidiana, de que eu e outros amigos nos gabávamos de nunca visitar. Em breve, no entanto, Mário dar-me-ia toda a liberdade de escrever sobre o que eu achasse de interesse para os leitores do jornal, incluindo crítica literária e cultural norte-americana. De um concerto dos Rolling Stones em Los Angeles a uma visita de rotina de João Bosco Mota Amaral, eu tentava dar conta da longínqua vida multi-étnica e multicultural no mítico Eldorado a oeste de todos os nossos sonhos aqui nas ilhas.[4]

Um pouco mais tarde eu visitava Lisboa, e pela primeira vez entrei no Diário de Notícias, com toda a timidez de um açoriano a sofrer mais um choque cultural no seu próprio país, admissivelmente nervoso por ir falar em pessoa com o director de um grande e prestigiado diário nacional, e que me havia dado tamanha oportunidade. Já não me restavam quaisquer dúvidas sobre a sua abertura intelectual, mas ao entrar pela primeira vez no seu gabinete fiquei muito mais tranquilo, pois deparei com o Mário desengravatado a ouvir deliciado uma entrevista da rádio com uma luso-americana[5] que estava de passagem por Lisboa na companhia da rainha das festas de San Diego, essa colorida celebração que ainda continua a comemorar todos os anos a chegada à Califórnia de João Rodrigues Cabrilho, o navegador português ao serviço de Espanha, e o primeiro europeu a avistar aquelas terras no século XVI. A nossa conhecida activista comunitária falava livremente, com o seu forte sotaque luso-americano, e com toda a descontracção da sua cultura californiana e desenvolto modo de ser pessoal. Para mim, era mais uma prova de que Mário estava atento a todo o seu mundo português, sem os preconceitos que, muito provavelmente, ainda hoje limitam muito do nosso pensamento acerca da reconstrução de uma pátria em busca de nova identidade e reinvenção estruturante de todo o seu próprio imaginário. Como atestam pelo menos um dos seus livros anteriores à obra presente, quer em editoriais do Diário de Notícias quer noutras ocasiões e espaços, Mário Mesquita sempre “combateu” este “provincianismo” português, particularmente no que às ilhas diz respeito: o tratamento na imprensa nacional que a política e cultura merecem, ou melhor dito, desmerecem.

Com efeito, a sua reflexão sobre o jornalismo e os media em geral, lado a lado com a prática do mesmo, principalmente desde o jornal República, é já de longa data e consistente. Publicou em livro uma boa parte das suas principais intervenções, quer como repórter e editorialista, quer como estudioso de todo fenómeno comunicacional nas sociedades contemporâneas. Deve & Haver, [6] A Regra da Instabilidade,[7] O 25 de Abril nos Media Internacionais,[8] com José Rebelo, e O Jornalismo Em Análise: A Coluna do Provedor dos Leitores[9] são alguns desses títulos, para além de muitos outros trabalhos de cariz mais teórico, agora quase todos reunidos na obra presente. Em todos eles sobressai essa desusada capacidade de penetração nos textos e nas situações que os inspiram, sobressai a sociedade, ela própria, em todas as suas fases ou versões político-culturais, como texto aberto e não como realidade monolítica canonicamente interpretada e intelectualmente arrumada. A sua desconstrução tanto tem de impiedosa como de elegante, o estilo denunciando ou sendo o homem: ao lê-lo como que ouvimos a voz serena do articulista, conferencista ou professor irónico e socrático, a levar uns e outros não necessariamente a partilhar os seus pontos de vista e opiniões mas, sim, a levar os seus leitores ou ouvintes aos corredores de realidades espartilhadas e distorcidas num jogo de espelhos, que ora reflectem uma dimensão ora outra da nossa existência, ora nos devolvem a multiplicidade de imagens com que os media nos vêem e efectivamente nos representam. Como Provedor dos Leitores do Diário de Notícias sistematizou o que sempre foi evidente em todos os seus outros textos: a capacidade de perceber simultaneamente o lugar do enunciador e do receptor de notícias, comentários ou análises jornalísticas.

Será, possivelmente, considerado excessivo o espaço - escreve em A Regra da Instabilidade, respondendo a certas atitudes de alguns quanto a uma determinada faceta da sua actuação e escrita no Diário de Notícias, que então dirigia – dedicado à problemática açoriana. Não vou justificar-me com a pobreza – a roçar a indigência – da Imprensa continental ou da Universidade Portuguesa, no tratamento das questões insulares. De livre vontade confesso falta de isenção na matéria, por uso e abuso de provincianismo ilhéu, provocatoriamente cultivado para irritação do pedantismo lisboeta e congéneres.[10]

O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na Sociedade Contemporânea, este riquíssimo livro de teorização e prática jornalística portuguesa nos nossos dias, inserida pelo autor em praticamente todos os seus ensaios no vasto mosaico mundial que é o fenómeno da comunicação e jornalismo transfronteiriços nos nossos dias, pode e deve ser lido também à luz dessa incomparável maneira de ser e estar, dessa, entre nós, total abertura ante os seus diversos mundos lusos, desde os Açores a Lisboa até às nossas comunidades, que ele reconheceu, primeiro do que muitos no jornalismo português, dando espaço tão abrangente à voz a que todo um povo tem direito, o reconhecimento público que dignifica e abre uma porta de pertença na nossa historicamente “casa comum”, apesar da distância e da desterretorialização de que nos fala Édouard Glissant em temas literários (a poética da relação), também pertinentes para a lusofonia. Toda a escrita acaba por ser mais ou menos autobiográfica, retratando, senão factos vividos, o percurso, digamos que imaginativo, do seu autor, estrutura num só discurso a experiência e práticas pessoais com o pensamento puramente teórico do seu autor. O Quarto Equívoco não só insinua essa caminhada profissional única entre os jornalistas portugueses e respectivos estudiosos, como se referencia num vasto leque de pensadores teóricos das mais díspares latitudes e tradições, os que tentam perceber como o jornalismo (na sua longa história, a partir do século dezassete), e as modernas comunicações se tornam, paradigmaticamente, num espelho-outro tanto de sociedades totalitárias como democráticas. Efectivamente, ler O Quarto Equívoco é ainda tornar-nos conscientes de como todo o discurso público actual interliga política e ideologias, arte erudita e popular, literatura e cinema, constrói e desconstrói figuras, ideias e projectos, inventa centros e define margens, hierarquiza grupos societais, interliga o puro espectáculo inconsequente com as mais dramáticas ocasiões vividas num país ou entre nações. Privilegiando os teóricos, escritores e, até, cinematógrafos anglo-americanos, francófonos e portugueses, Mário Mesquita desenha-nos um complexo mosaico de jornalismo, cultura e cidadania nas sociedades mais tecnológica e economicamente desenvolvidas. O seu conhecimento dos estudos da comunicação e do jornalismo nos Estados Unidos é verdadeiramente enciclopédico, assim como é o seu relacionamento intelectual com a França (e, em termos menos expansivos, ao que parece, ou no que sobressai neste seu livro, com a Grã-Bretanha). Por minha parte, como leitor, passe a expressão, activo e interessado destes ensaios, nem deixei de sublinhar as generosas notas de rodapé num acto de actualização de saberes culturais cruzados ou interdisciplinares, referentes especialmente ao país que também é o meu, e sobre o qual me considero razoavelmente bem informado, os Estados Unidos. Refazer com o autor uma leitura aqui, por exemplo, dos filmes Fury de Fritz Lang, Citizen Kane de Orson Wells e Zelig de Woody Allen, esses que dramática e/ou parodicamente revêem a grande imprensa na sociedade do seu tempo, é de facto também adquirir outras perspectivas para a própria revisitação literária de textos ficcionais e culturais semelhantes.[11] Dividido por longos capítulos que se intitulam “Actualidades”, “Poderes”, “Perspectivas” “Deontologias” e “Cerimoniais”, cruzamo-nos de página em página com as questões que formam e enformam todo o debate presente em volta do jornalismo e múltiplos sectores da comunicação nas sociedades pós-modernas da nossa época. Da reflexão da prática e ensino destes temas - em que o autor tem já uma vasta, reconhecida e profunda experiência a vários níveis - do confronto entre teorias totalizantes ou desconstrucionistas e olhares mais prosaicos, Mário Mesquita leva o leitor a repensar todo e qualquer gesto e aproximação aos meios de informação - ou desinformação - responsáveis por todo o discurso público nacional e internacional dos nossos tempos, e conforme as manipulações dos mais variados poderes societais num determinado momento. Em suma, eis aqui o jornalismo histórico e actual vistos frequentemente em relação a outros géneros mais próximos, como a literatura, eis aqui os seus praticantes de diferentes escalões, desde o escritor-jornalista ao jornalista-de-agenda ou necrologia, levando frequentemente o leitor de O Quarto Equívoco a um outro, ou novo, entendimento tanto da “beleza”, digamos, como da rude e irremediável efemeridade de um texto periodista. O andamento da escrita de Mário Mesquita entre teoria e prática, entre opiniões, repita-se, dos mais reconhecidos teóricos mundiais da comunicação e jornalismo, entre a historicidade e actualidade do género, entre este e as outras artes, está vivamente caracterizado por uma dialéctica da abertura e tolerância, ou mesmo firme rejeição e aceitação na multiplicidade de textos e “cerimoniais” da comunicação dirigida a nós todos, em qualquer geografia ou espaço linguístico-cultural.

As ligações entre jornalismo e literatura - escreve no ensaio “Do Ensino ao Exercício Profissional” - não se limitam à questão estilística. O jornalista é encarado como alguém que conta estórias. Afirmar a narratividade de algum texto jornalístico informativo significa admitir que as notícias correspondem a uma realidade construída de acordo com uma lógica interna própria, que se manifesta ao nível do conteúdo e da estrutura externa. (...) A estrutura narrativa das notícias aproxima o jornalismo da literatura, mas a pretensão explicativa leva-o a situar-se numa zona contígua às ciências sociais e à história. Esta oscilação é fautora de tensões: ‘há no jornalismo tantos profissionais defensores da prioridade à exactidão como adeptos da beleza na expressão’.[12]

Serão poucos os praticantes e estudiosos do jornalismo e da comunicação em Portugal que, como Mário Mesquita, têm essa postura descomplexada ante o rico legado histórico e intelectual de todo o mundo português, nas suas recortadas geografias. Dois ensaios ou estudos de O Quarto Equívoco, creio, clarificam essa habilidade e disponibilidade de nunca esquecer ou simplesmente ignorar o que de melhor se tem feito entre nós e entre os outros. Os ensaios “As Tendências Comunitárias no Jornalismo Cívico” e “A Deontologia do Jornalismo como Antecipação ao Direito” são-me, directa ou indirectamente, particularmente caros, pelo que de outras ou insinuadas referências contêm, regressando aqui à breve introdução deste meu texto, ou ainda pelo modo como definem algumas das suas preocupações e saberes no que aos açorianos e aos imigrantes dizem respeito, adentro do nosso jornalismo cá e além fronteiras. O primeiro, sobre o jornalismo cívico, vem significativamente dedicado “A Gustavo Moura”[13] e “Aos meus amigos do Fórum Açoriano”. Nem o jornalista Gustavo Moura nem o Fórum Açoriano necessitam de apresentação entre nós. Estou em crer, no entanto, que o implícito significado deste “gesto” do autor não nos pode passar despercebido. Nem cabe tão-pouco neste espaço explicar do que se trata quando se fala de jornalismo cívico, pois Mário fá-lo melhor do que ninguém. Muito antes deste movimento na imprensa americana durante a última década do século passado, em que o incentivo à militância cívica é crucial nessas páginas, o autor de O Quarto Equívoco já tudo isso reconhecia nalguns dos nossos jornais da imigração, e suponho que nos do próprio arquipélago: a consciência de que o jornalismo nas pequenas comunidades é essencialmente a exortação ao envolvimento do cidadão na vida pública. Toda a crítica e elogios de Mário Mesquita vêm empaticamente do interior do mundo da informação e comunicação, nunca deixando ele de chamar a atenção para os perigos desse compromisso programático no jornalismo cívico, mas reconhece-o como uma resposta legítima à alienação e indiferença dos cidadãos perante a política tradicional e aparelhística. Ressalva, neste como em muitos outros textos de O Quarto Equívoco, o imperativo do distanciamento, ou a sempre muito discutida objectividade jornalística, o que me parece de todo prudente, pois cair na fulanização é um dos perigos que sempre espreitaram e espreitam, hoje mais do que nunca, na nossa imprensa regional ou de imigração, dado que, em minha opinião, uma e outra são praticamente indiferenciáveis nas suas tradições e nos seus objectivos editoriais. Essa objectividade jornalística – se totalmente inatingível - deverá permanecer pelo menos como uma plataforma ética, visando e avisando cada um da essencialidade do maior equilíbrio possível em qualquer texto quanto às questões e pessoas aí abordadas. Cada jornalista traz para o texto, como aponta repetidamente Mário Mesquita, toda a subjectividade da sua ideologia e formação profissional e académica.

A preocupação do movimento do jornalismo cívico em reavivar o conceito e as práticas da cidadania, - escreve Mário Mesquita no referido estudo – a sua preocupação crítica das formas de futilização da política adoptadas por certos media, o aprofundamento da ligação entre os jornalistas e os cidadãos comuns são aspectos que conferem relevância a esta tentativa de reformular o perfil do jornalista e as práticas jornalísticas.

O projecto do jornalismo cívivo - continua ainda o autor de O Quarto Equívoco - representa uma tentativa ambiciosa para repensar globalmente o ‘campo jornalístico’. Se a preocupação com a cidadania que preside ao seu aparecimento concita um conceito quase generalizado, não se pode afirmar o mesmo acerca de algumas outras características.

Numa breve síntese, as principais objecções ao jornalismo cívico respeitam ao desenho de um novo perfil de jornalista-participante, em prejuízo da atitude clássica do jornalista-observador; ao abandono das concepções tradicionais de distanciamento jornalístico, em benefício da defesa de causas comunitárias, correndo o risco de alinhamento explícito de jornais e jornalistas ao lado de determinadas correntes políticas (...).[14]

O Quarto Equívoco - que não o “quarto poder”, de que há muito se fala, e que me parece Mário Mesquita entender hoje como constituindo uma miríade de fragmentados discursos públicos, em formas e até géneros de informação e comunicação muito diferentes, e por vezes antagónicos entre si, para que lhe possamos atribuir esse papel “parlamentar” não eleito em sociedades abertas – dirige-se a estas e a muitas questões e temas presentes nos media do mundo actual. Esta disponibilidade para interligar e, mais ainda, questionar e problematizar um tão alargado debate, principalmente nas sociedades (Portugal, Estados Unidos e França, em primeiro plano) que lhe oferecem as mais diversificadas referências no campo jornalístico e das comunicações em geral, apresenta agora ao eventual leitor ou estudioso das mesmas questões uma prodigiosa fonte de nomes, obras e casos. Do mesmo modo, a abertura com que tanto olha nestas mesmas páginas da obra presente para os mais conhecidos jornais (ainda) de referência nacionais e internacionais como nos chama a atenção para outros de menor dimensão e dirigidos a públicos mais reduzidos numericamente e de influência local ou regional, só será possível num autor com uma especial formação prática e académica, capaz de integrar numa espécie rara de democraticidade (sem nivelamentos por baixo) o exercício contínuo da sua profissão nos melhores jornais do nosso país e, concomitantemente, a teorização e ensino do complexo labirinto textual e audiovisual de onde emanam e em que se enquadram os infindáveis discursos públicos e institucionais da nossa época. Duvido que, em Portugal, exista muitos mais estudiosos da imprensa e dos media tão profundamente atentos aos vários escalões das nossas publicações, capazes de citar um trabalho da autoria do jornalista e escritor micaelense Manuel Ferreira sobre como o jornal regional Açoriano Oriental foi o primeiro, em 1835, a elaborar e a publicar um estatuto deontológico (a que chamaram de Prospecto), que ainda hoje, afirma Mário Mesquita, deve servir de referência a qualquer publicação nacional, séria e referencial.

Numa troca de impressões via net com Onésimo T. Almeida acerca de O Quarto Equívoco, (ele próprio um reconhecido mestre da crónica jornalística na nossa imprensa nacional e da imigração, e um leitor atento desde sempre de toda a obra de Mário Mesquita), recebi dele a certa altura um parágrafo em forma de carta, que não resisto a reproduzir neste preciso espaço e momento, por constituir uma outra síntese lapidar de todas as questões que aqui abordei, e ainda algo mais:

Mário Mesquita é um caso singular na comunicação portuguesa por conseguir estabelecer diálogo com diversas áreas do saber, mas mantendo sempre um centro que é a problemática social e política da comunicação. O saber enciclopédico que ressalta deste seu livro não tem qualquer relação com os aparatos eruditos que com tanta frequência se encontram em obras deste género. Mário Mesquita passa cada livro ou ensaio que cita, cada ideia que comenta, pelo crivo crítico de um olhar atento elevando (ou aprofundando) mais longe do que ninguém em Portugal a reflexão sobre a comunicação social. Mas há uma outra faceta ainda dessa sua versatilidade: Mário Mesquita tem veia de escritor, como o revelam abundantemente as suas crónicas. Daí resulta que qualquer reflexão teórica que desenvolve consiga manter exemplarmente a marca do escritor tornando assim esta volumosa colectânea de ensaios num prazer de leitura.[15]

Hoje, sei de igual modo que muito poucos entre nós e na direcção de um jornal como o Diário de Notícias teria sequer pensado há tantos anos na “necessidade” de colocar em campo um correspondente na então longínqua Califórnia, com a expressa missão de explicar aos leitores nacionais daquele jornal a vida pública e histórica da imigração açoriana aí fixada. Este livro de Mário Mesquita, para além de todo o mais que significa, explica essa particular ética e visão muito especiais entre nós. Depois de qualquer leitura atenta de O Quarto Equívoco ninguém olhará e entenderá do mesmo modo o nosso mundo da informação jornalística e do espectáculo “cerimonial” - como lhe chama o autor num dos seus capítulos - ou degradante presente em todos os outros meios de comunicação, nacionais ou estrangeiros. Da bruma (ou negrume) presente, também é essa uma outra mensagem eloquente deste livro, estão pungentemente em campo, a nível nacional e regional, os outros, os que representam diariamente a dignidade jornalística, os que carregam a palavra mais ou menos objectiva e da retórica político-ideológica com as semânticas da dignidade cívica, política e cultural. ▼



[1] Mário Mesquita, O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na Sociedade Contemporânea, Coimbra, MinervaCoimbra, 2003.

[2] Pouco mais tarde, as palavras “imigração” e “emigração” quase seriam banidas por completo dos discursos portugueses oficiais e oficializados, pois passaram a ser termos mais ou menos pejorativos, no pensamento político do país de origem, que “denegriam” a ideia de “comunidades”. Escrevi então no Diário de Notícias que se tratava de mais um preconceito português em relação aos i/emigrantes. Por outro lado, na cultura norte-americana, especialmente na literatura e no cinema, os mesmos termos eram historicamente usados para significar, quase sempre, a epopeia dos que abandonaram a sua terra natal para se fixarem noutra, e aí reinventar, por vezes heroicamente, toda a sua vida. Os próprios e/imigrantes portugueses nos Estados Unidos nunca haviam manifestado qualquer sentido de inferioridade quando referidos através dessa terminologia. “Se não me engano, - escrevi então num artigo publicado no Portuguese Times a 11.11.1990 – é a segunda vez que a genial ideia comove aqueles que, em Lisboa, estão ligados aos assuntos da nossa Emigração. Querem banir do nosso vocabulário as palavras que descrevem a nossa realidade sócio-histórica. Ao que parece, emigração, emigrantes/imigrantes significam miséria, ou qualquer condição vergonhosa para o Estado português. A secretaria de Estado das Comunidades e o primeiro-ministro Cavaco Silva estão convencidos de que a nossa realidade é já muito diferente de tudo isso. (...) A simbologia arrivista dos nossos dias tem muito que se lhe diga. Só que mais cedo ou mais tarde a realidade bate à porta – ficamos nós e vão-se as bonitas frases ou símbolos. Mas desta tendência portuguesa para a retórica vazia já se queixava Eça de Queirós, quando dizia que entre nós era, mais ou menos, o salvar a palavra e lixar a ideia. Ora, na nossa evolução do momento vamos um pouco mais além - lixe-se a palavra, e a ideia também.” (in Vamberto Freitas, Para Cada Amanhã: Jornal de Emigrante III, Lisboa, Edições Salamandra, 1993, p. 36).

[3] Eu acabaria muito em breve por propor outros trabalhos, que seriam sempre aceites por Mário Mesquita, e mais tarde pelos directores do DN que lhe seguiram. Escreveria especialmente sobre literatura e cultura norte-americanas, tanto na secção principal do jornal como no extinto suplemento Cultura. Ainda mesmo a partir da Califórnia, escrevi extensamente sobre Literatura Açoriana, tendo quase todos esses trabalhos sido reunidos n’ O Imaginário dos Escritores Açorianos (Lisboa, Salamandra, 1992). O convite inicial de Mário Mesquita acabou me abrir vários mundos, que até então me pareciam  e estavam bem distantes, se não perdidos.

[4] Passei a incluir nessa correspondência e colaboração no Cultura crítica das obras não só de autores anglo-americanos e afro-americanos mais ou menos canónicos, como de outros escritores “étnicos” ou “imigrantes” (Amy Tan e Bharati Mukherjee, por exemplo) dos Estados Unidos. Pensava e penso que a experiência imigrante destes e doutros escritores era também como que um reflexo da vivência das nossas próprias comunidades. Tiraria daí América: Entre a Realidade e a Ficção Jornal da Emigração IV (Lisboa, Salamandra, 1994).

[5] Trata-se de Mary Giglitto, (de descendência açoriana, das ilhas centrais), uma conhecida activista comunitária na Califórnia, mais propriamente na cidade de San Diego. A rainha das festas comemorativas da “descoberta” da Califórnia visitava Portugal todos os anos e era (creio que esse “ritual” ainda se mantém) recebida pelas mais altas instâncias polítcas e de Estado, incluindo o Presidente da República.

[6] Mário Mesquita, Deve & Haver, Lisboa, Distri Editora, 1984.

[7] _____________, A Regra da Instabilidade, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1987.

[8] Mário Mesquita e José Rebelo (Orgs.), O 25 de Abril nos Media Internacionais, Lisboa, 1994.

[9] Mário Mesquita, O Jornalismo em Análise: A Coluna do Provedor dos Leitores, Coimbra, Minerva Coimbra, 1998.

[10] Mário Mesquita, A Regra da Instabilidade, p. 18.

[11] Na altura escrevi um artigo crítico para o Diário de Notícias sobre o filme Broadcast News, que também trata o mundo dos media dos Estados Unidos. O seu impacto público na “desconstrução” cómica e irónica, quase verrinosa, dos telejornais das grandes cadeias televisivas norte-americanas foi de tal ordem, que levaria a revista Newsweek a dedicar-lhe uma das suas capas. Escrevi: “Esse inapagável fascínio do grande público pelo jornalismo transfigurado foi sempre, por outro lado, um facto de duvidoso orgulho para os profissionais da informação. É claro que qualquer grupo societal gostará de ver a sua imagem ampliada, mitificada, tornada curiosidade, e que, como neste caso, leve à fundação de escolas especializadas e a sonhos de alguns de um dia pertencerem à casta. Poucas profissões modernas estarão tão submersas em fantasia e romantismo, para os que olham de fora, como o jornalismo. Mas, paralelamente, a maioria das obras, cinema ou livros, sobre tudo isso é motivada em geral pela desconfiança e outras noções, justificadas ou não, de que nem toda a verdade está a ser dita por aqueles que outra função não têm senão transmiti-la a todos. Reconhecido como guerreiro na linha da frente contra as forças obscuras deste nosso mundo, All The President's Men (livro e filme), no entanto, foi uma das raras excepções dos nossos dias, em que o jornalista apareceu como herói limpo. (“Broadcast News: Jornalismo e Amor na América”, in Vamberto Freitas, Jornal da Emigração: A lUSAlândia Reinventada, Angra do Heroísmo, Gabinete da Emigração e Apoio às Comunidades, 1990, p. 44.).

[12] O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na Sociedade Contemporânea, p.188.

[13] Para além de uma amizade de longa data com o autor de O Quarto Equívoco, Gustavo Moura foi director durante muitos anos do Açoriano Oriental, jornal em que Mário Mesquita colaborou durante alguns 15 anos, transferindo mais tarde a sua coluna semanal para o Correio dos Açores, também de Ponta Delgada, onde ainda hoje a mantém. Mário Mesquita leu “As Tendências Comunitaristas no Jornalismo Cívico” numa homenagem a Gustavo Moura promovida pelo Fórum Açoriano, na Câmara Municpal de Ponta Delgada, a 9 de Dezembro de 2000.

[14] O Quarto Equívoco: O Poder dos Media na Sociedade Contemporânea, p. 67.

[15] Correspondência recebida a 26.11. 2003. É reproduzida aqui com a autorização do seu autor.