ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA - O Meu Nacionalismo


Alguém, a quem a minha memória não consegue neste momento fazer justiça, sugeriu uma maneira de se saber quais as crenças mais profundas e íntimas de uma pessoa. Num diálogo sobre valores ou convicções pessoais, em que ambas as partes argumentarem na sua melhor forma, quando uma delas corar é porque foi tocada no foro mais íntimo, no cerne aonde a razão não chega.

Acabo de fazer uma viagem de duas semanas entre o Alentejo e o Minho, organizada pela Smithsonian Institution, de Washington. As pessoas do grupo não se consideram turistas, mas viajantes. Conhecem o mundo quase todo e não vêm atrás do exótico nem do sol, mas daquilo que lhes permita alargar a lista das suas experiências humanas - a sua experimenteca talvez. Não se queixam quando o sumo de laranja não saiu fresco e não dizem aaaahhh! nem avaliam o que vêem pela medida do que lhes ficou em casa. Para além dos guias locais e de um gestor-geral, dão-se ao luxo de trazer um professor universitário para lhes fazer uma série de conferências sobre a cultura do país e servir de consultor ambulante para tudo o que os guias não disseram mas eles acham dever ser das obrigações profissionais do professor: desde o nome de uma erva qualquer ao número de frequentadores regulares da mesquita de Lisboa. E, cinco minutos antes da hora das conferências, lá estavam todos, sempre, entre a fome do jantar e o cansaço de um dia de viagem, de caneta desperta e papel pronto para as notas. Felizmente não adormeci nenhuma vez.

Portugal, pelos olhos dessa dúzia e meia de gente, poderia ser tema para crónicas até ao fim do ano. Porque estavam desprevenidos (apesar da introdução antecipada ao país e à sua cultura via dois livros que lhes foram previamente enviados), as suas reacções não se afastaram das encontradas nos relatos de viajantes ao longo dos séculos. Só não coincidiram em pleno graças à sua atitude compreensiva sobre o diferente, bem como ao facto de Portugal estar hoje muito longe daquele antigo atraso à beira-mar plantado.

Procurei ir sabendo de cada um as razões da escolha deste nosso luso jardim. As respostas foram quase unânimes: não sabiam mais para onde ir e depararam assim ao acaso com um anúncio da viagem na revista da Smithsonian, que assinam. Munidos dessa grande razão, vieram por aí abaixo. Não surpreende, pois, Portugal ter-lhes sido surpresa: a descoberta instantânea da importância de se andar de ténis nas calçadas de Lisboa, e da urgência de se fazer um seguro de vida antes de lhe atravessar uma rua - ou mesmo iniciar qualquer percurso alpinista num passeio. Mas descobriram também o charme das aldeias alentejanas, o aconchego comunitário dos centros antigos das cidades e vilas do Norte, a exuberância do vale do Douro, ou o mergulho no interior da mente portuguesa do século XVIII ao entrar-se, por exemplo, na Igreja da Madre de Deus. (A boa vontade de um deles quis ver, na anarquia da construção habitacional por esse país fora, a marca de uma individualidade criadora, pois uma casa não é igual à do vizinho...) Depois, a gente. Com tempo para usar e para dar quando se lhes faz uma pergunta. A afabilidade e mais todas aquelas decantadas virtudes, dos nossos maiores herança. Tudo como se fosse um cliché de guia turístico, que não era. Construíam-no com as experiências de cada dia recontadas ao jantar, quando eu patrioticamente me continha evitando dizer-lhes que sim, era verdade, mas o sotaque estrangeiro era um grande estímulo.

No fundo, estes americanos queriam que o meu Portugal usasse o seguinte lema na preparação do século XXI: para o Portugal paisagístico, preservar o exterior, modernizando o interior; para o Portugal humano, modernizar o exterior, mas preservar o interior.

Verdade se diga, não escondo que, no íntimo, me deliciava a descoberta que lhes era a minha pátria, sentimento hoje já quase estranho a muitos patrícios meus, cidadãos da Europa quase sempre atracados em Lisboa. Vou, porém, confessar aqui um dos meus momentos de rubor. Aconteceu em Cascais. Enlevados com o tom convidativo do mar, queriam dar um passeio de barco. O guia lamentou não haver excursões nem barcos para aluguer. Não queriam acreditar. Ofereci-me para ir ao cais perguntar a algum pescador se estava disposto a uma volta com um grupo. À medida que me aproximava da água, aumentava-se-me a sensação de me afogar no pivete nauseabundo proveniente (suponho) dos esgotos que ali desaguavam.

Hesitei. Parei. Recuei. Voltei para trás. Ruborizado por dentro, mas com uma convincente cara de pena, expliquei ao grupo que os pescadores não estavam autorizados a levar passageiros.

Se calhar a invenção era incorrecta, mas naquele momento foi altamente patriótica.

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