ADELAIDE BATISTA - Os Açores na Convergência dos Olhares


Esta terra açoriana fragmentada e atirada a distância, pedaços de lava dispersos pelas crateras da desaparecida Atlântida, agiu sobre a alma insular sempre em dois sentidos opostos: - um na horizontal, de migração para longes terras, outro na vertical, na direcção da divindade. Expansão e recolhimento interior - dois movimentos antagónicos com a mesma raiz de ínsula. Dualidade conflituosa que oscila entre o intimismo e a abertura ao mundo, entre a tensão e a distensão, entre o silêncio e a fala com os estranhos [...]. Por pouco não somos místicos... Por pouco também não somos conquistadores de continentes... Ficámos sempre a meio caminho entre o ter e o ser, entre a realidade e o sonho, entre a realização e a frustração - simbolicamente marcados no mapa a meio Atlântico, entre dois mundos, sem pertencermos decididamente a nenhum...

Fernando Aires

Optei por estas palavras, como poderia ter optado por tantas outras de tantos outros bons escritores açorianos. É sinal - para começar - de que temos muita gente nos Açores a pensar o seu espaço, o seu lugar (1) e o povo, tanto na ficção como na poesia, no teatro, no diário e na crítica. E como estamos neste Colóquio para melhor nos conhecermos, informo desde já que apagarei de certa forma a minha voz para, em seu lugar, vos dar uma noção (ainda que apenas demonstrativa) de algumas das mais importantes vozes do arquipélago - no que respeita à cultura e literatura; ou seja, à vivência, ao imaginário e ao pensamento - para, em conjunto, partilharmos de tudo isso, numa perspectiva de confronto com os múltiplos universos de cada arquipélago, nos contrastes e semelhanças que apresentam entre si. Será, a partir desse confronto, que cada um de nós sairá deste

Colóquio com uma nova perspectivação sobre a sua própria realidade. E é isto, sem dúvida, que mais me motiva a estar aqui. Até porque quanto mais estudo a realidade ilha (Batista, 1991), na sua unidade ou conjunto, ou no seu sistema, mais vejo nela uma representação da própria natureza do ser humano: do insular, por certo, sujeito que está à dupla expressão de terra e mar, de interior e exterior, de um cá e de um lá; mas do Homem, em geral, especialmente neste findar de século a caminho de outro, quando, num mundo de disjunções, de perdas e errâncias, se apela às relações, à interdependência e à sabedoria de se conviver simultaneamente com ambas as realidades, num transe de contrários, cuja dinâmica assenta na relação dialógica. Neste contexto, estou em crer que hoje o insular se coloca numa situação privilegiada, no sentido em que a ilha o talhou para essa ambivalência de consequente triangulação (na linguagem de Eva Hoffman, e, na concepção melvilliana, conhecida por choque de reconhecimento (2)). Uma postura que em princípio irá dominar o próximo século, depois da queda do sistema binário, em prol do trinário; ou seja, isto de se viver (como se lê em epígrafe) "entre dois mundos, sem pertencermos decididamente a nenhum". A este respeito, já dizia Vitorino Nemésio:

Como homens estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar (Nemésio, 1932).

Trata-se efectivamente duma natureza ambivalente que, na sua bipolaridade, não se funde, antes se digladia e alternadamente se harmoniza, para assim permanecer num eterno jogo de opostos. Um jogo que se nos é colocado no dia a dia, de forma tão concerta e visível que fica "à mão de semear": a começar por

Um sol queora se visita ora se esconde; ora reaparece banhado na chuva que fustiga, ora parte para longes terras remetendo a ilha para a sua concha de bruma. Um cenário nunca igual a si próprio e que, por isso, coloca os mais sensíveis muito próximo do "espanto", frente ao inesperado e ao desconhecido. E tudo isto num dia. E muitos dias, ao longo do ano, que proporcionam largos intervalos intermitentes de revitalização e renascimento. A pensar na irrequietação de toda esta natureza, diz de novo Fernando Aires:

a paisagem é um estado de alma que nos vive nos olhos, nos ouvidos, no olfacto. Logo nos sentimentos e nos pensamentos. Se um simples movimento a modifica, leve que seja, já não se trata da mesma coisa. E é assim que estar num sítio não é estar sempre no mesmo lugar, mesmo que não se mude de lugar (Aires, 1993,21).

A constatar o raciocínio expresso neste texto, relativamente ao "lugar",
acrescenta Fátima Borges, no tom irónico e humorista, que lhe é muito peculiar:

Vou à procura de um lugar onde este me saiba e de outro tempo para que este me pertença, porque só distância responde por estas coisas[...]. Aqui é um advérbio de tempo, contra o que tão categoricamente sempre afirmaram os fazedores de gramáticas. (Borges, 1989,60).

Um tempo, sem dúvida, que se vai diluindo com o desenvolvimento das últimas décadas e que constituiu um dos mais recorrentes tropos da nossa literatura. Até há bem poucos anos, "em casa tínhamos horas apenas nossas"; fora, no campo, "as nossas eram horas de sol e horas de mais ou menos" (Melo, 1988,83-84). Hoje, esse tempo é ainda uma realidade (mais imaginária que real, certamente, mas inda sem perder o seu estatuto de lentidão, de sabor a tempo), como o reafirmam, nos textos mais recentes que em mão, Ivo Machado e Emanuel Félix.
Diz-nos Ivo:

Além de registar tempo, o relógio perde tempo; isto é, no arquipélago o tempo Do relógio não tem importância [...]. Mas isto só acontece no limite da ilha porque os homens têm sempre tempo, para si e para os outros, coisa rara nas sociedades cosmopolitas [...]. Talvez se escreva nas ilhas por causa deste Tempo em abundância, direi mesmo, este sobejarmo-nos para os outros (Machado, 1999).

Por sua vez, Emanuel Félix, num livro da mais apurada poesia, num poema que se intitula "Três postais de S. Jorge", fala-nos do tempo sagrado, ainda de certa forma preservado (mas também ameaçado) nas ilhas:

1.
Nas Velas, junto ao Arco
um chocalhinho breve
feriu furtivamente a superfície
de vidro
da manhã

2.
Deixei o meu relógio algures numa fajã.
Onde não contam horas nem minutos
É o tempo de Deus.

3.
Acabo de enviar um apelo veemente
aos excelentíssimos
detentores do poder municipal:

Deixem Nosso Senhor passear sossegado p'los trilhos antiquíssimos da inefável Fajã do Sanguinhal.
(Félix, 1997,18-20)

Este é tempo e o espaço das ilhas, onde, como dizia Nemésio: tudo é cá tempo em espaço pervertido. Toca-se aqui (pode-se dizer) a crição. Na alternância da luz e das trevas, do fundo das águas e da superfície terrestre, toda a natureza se agita e se renova, não só através daquilo que intuímos mas também, e claramente, daquilo que vemos e palpamos. É a ilha na sua mais elevada dimensão palimpsesta: eis agora, por exemplo, um vulcão a cobrir de cinzas a terras, ora outro em eras distintas, ao largo da costa, a lançar em implosão pedras enormes que coalham a superfície do mar e que, logo depois, libertado o gás que as sustenta, regressam ao ponto de partida, ao espaço primordial (como está a acontecer ao largo da Serreta, na ilha Terceira); noutros tempos, eis uma outra ilha e ainda outras mais que emergem (como aconteceu nos séculos XVIII, XIX e XX), para meses ou poucos anos depois desaparecerem, mergulhando de novo nas águas abismais (Chaves, 1960,312-61). E nao se trata de uma miragem; ela (a ilha de curta duração) é com efeito real: nela se pode andar, hastear-lhe uma bandeira, declará-la sua e logo ver-se despossuído dela. Por outro lado, as nove ilhas, que persistiram ao longo dos milénios, demarcam-se ainda hoje pelo efémero e o contingente, situadas que estão geotectonicamente (à excepção das duas mais ocidentais) num pequeno enclave triangular, junto à fricção das placas euro-asiática, africana e americana. A igual feitiço, de triangulação, estão sujeitas as próprias correntes marítimas que surgem (como as correntes de ar) cruzadas: "as centrais, cama espessa; e as profundas, frias, de muito sal. Parece que aquelas se geram in loco, contra a atmosfera, e que as profundas vêm do Atlântico. As centrais são revoltas; as profundas são tranquilas"- diz-nos Nemésio (1974,258), curioso que sempre foi das ciências naturais, não só pelo que pelo elas encerram em si mesmas, mas também como meio de encontrar nelas (através da linguagem que lhes é específica) metáforas e imagens de enriquecimento do seu Verbo, ou ainda paradigmas ou epistemas para a fundamentação das suas cogitações, ao nível daquilo que podemos entender aqui como poética da relação (na concepção de Édouard Glissant), sempre presente na consciência e na obra de Nemésio, como se depreende, por exemplo, destes passagens: "O espírito é, antes, dual. Desdobra-se para dialogar e sofre da própria contradita, mas é ela que o alimenta e sustém, no meio duma natureza inerte, surda e indiferente" (1932:276), ou ainda "Há duas ordens de realidade [...] e essas duas ordens forçam uma terceira [...], aquela que ambiguamente vive de ambas, morrendo de contradição" (1974,19).

É na contradição (que eu agora chamo de triangulação) que se coloca o insular, mas, independentemente dessa condição, é sobretudo a questão da distância que, especificamente nos Açores, entra em jogo. A lonjura é de facto um dos elementos primordiais da vida insular (Pelletier, 1997), pois a distância topografia, podemos dizer, não é a distância geográfica. Esta varia no espaço e no tempo, em função das condições naturais a que já me referi e que nos remetem para um longe ainda mais distante. E, depois, se é verdade que uma ilha é um pedaço de terra rodeado de água por lados, mais ilha o será quando ela é também cercada de ventos fortes por todos os lados e quando as águas revoltas dum Atlântico em fúria a distanciam ainda mais dos continentes, num cerco redondo, onde nem a norte, sul, leste ou oeste se "aproxima" qualquer costa. Esta é a nossa maior especificidade, que constitui "a matriz do modo de ser e estar do homem açoriano" (Batista, 1993,65), sempre tão presente na literatura açoriana. Para Nemésio, por exemplo, "Tudo para o ilhéu se resume em longitude e apartamento. A solidão é o âmago do que está separado e distante" (1983,69); para Lúcia Costa Melo (pertencente à já recente geração), a distância fica ainda muito, muito longe:

Nunca ninguém esclarece realmente
Mais complica e fica mais distante -além
Tão distante como eu estou agora
Longe, aqui, doidamente livre - aquém -
Prisioneira da relatividade
A queimar a morta liberdade da distância
Que a gente tem dentro de nós - tão longe! -
Como longe é aqui, mesmo nesta linha!
- que foge - neste papel, nesta voz,
Que já nem posso dizer que é minha:
Nem é voz, nem máquina, só distância
Do longe, que nunca está aqui...Aqui?
Fica ali... ...no longe...
(Melo,1979,25)

Para Martins Garcia (poeta, escritor, critico e professor na Universidade dos Açores), torna-se imperativo denunciar aquela lonjura:

urgente dizer distância
senão a fera crava a culpa na garganta
e o mundo pára vestibular
urgente suprimir o verbo esperança
para em seu lugar erguer distância
distância pura do nada esperar
distância estar
sabendo léguas como o facto banal
de haver o infinito além do transponível
distância vedando
o contacto de alguém-todos sob eternas cortinas
distância soberana
como a guilhotina que impede o morrer-se ontem
e cerce tonifica
a legião da afronta
a carne da distância
a impoluta
a obscena distância.
(1984,55)

Por tudo isto, torna-se claro, para nós, que insularidade nos Açores não é palavra vã. Vejamos: se é um facto que os estudiosos, ligados aos assuntos insulares, se interrogam (com legitimidade) até que ponto tudo isto é real ou ilusório - quando nos dia de hoje (através das várias tecnologias, dos media, da Internet, dos meios de transporte e da consequente globalização) se encurtam distância, quando as especificidades geográficas se anulam e os homens circulam cada vez mais, uniformizando por essa via as diferentes formas de viver - a verdade é que no Arquipélago ainda se vive essa insularidade, apesar de ela se ir esbatendo, principalmente a partir das últimas décadas.

Embora abertos ao mundo, desde sempre através essencialmente da escrita e duma cultura particular que lhes confere uma indelével indentidade, à qual Nemésio veio a dar o nome de açorianidade, entendendo-a como " o nosso modo de afirmação no mundo" (1975,29), os açorianos assumem com igual deferência a insularidade - qualquer coisa tão palpável, para eles, como a terra que tem a ilha e a água que tem o mar. É que, por mais que os contactos com o exterior se abram (e assim o têm sido, com momentos altos e baixos, ao longo de toda a história) o "descontinuo" permanece, como realidade em si própria. Por isso, num momento em que se pretende desvalorizar aquilo a que se usou chamar de insularidade, avançando-se, recentemente - para desnorteamento de alguns - com uma outra expressão que se quer deixar passar por similar (refiro-me à interioridade, própria dum continente), algo vai mal no reino da semântica, pois a primeira pertence ao universo do " descontinuo", que é o mesmo que dizer corte, ruptura, separação, e a segunda ao do " continuo". Dois universos distintos e por isso geradores de memórias, vivências e imaginários obrigatoriamente diferentes, concentrados, no caso dos Açores, numa galáxia de metáforas, mitos e imagens que se prendem, no âmbito literário, com abandono, naufrágio, orfandade, exílio, o sentido de pedra, de não - retorno, mas ao mesmo tempo o apego ao torrão pátrio da suas ilhas, e a dor da não - pertença ao restante pedaço territorial português - esse seu "drama do saber, mas não conhecer; de compreender, mas não viver; de amar, mas não compartilhar...e isso apenas porque a realidade fica longe de nós" (Morais, 1991). Razão suficiente para que João de Melo, num texto de 83, ainda hoje actual, viesse a terreiro para explicar aos mais incautos o que é a insularidade açoriana (permitam-me sublinhar):

Mas a insularidade, sendo embora um factor inicial, ganha espessura nas gerações seguintes e passa a ser um dado essencial da vida e do pensamento açorianos. Essa palavra nem sempre existe nos dicionários; existe, sim, emais do que no resto, no espírito de quem sente os seus efeitos. Não é apenassinónimo de separação, mas de solidão colectiva, e tem naturalmente reflexosno comportamento dos homens em relação aos outros e a si mesmos. É assimcomo um olhar para dentro (Melo, 1982,13-14).

A distância, que está na raiz de tudo isto, é agora abordada - através dum olhar de fora - por Eduardo Lourenço, quando (acerca " Da autonomia como questão cultural", titulo que deu à sua intervenção, em 1987, na cidade de Angra do Heroísmo) se debruça sobre o que ele considera o "duplo e reversível distanciamento" do Arquipélago dos Açores em relação ao Continente:

Não vale a pena insistir neste contencioso, embora seja ele que tenha imposta e justifique hoje o estatuto autonomista. Se um poeta portuense contemporâneo podia dar a um dos seus livros o título Lisboa é longe, que título os açorianos podiam dar aos seus livros escritos ou não escritos para exprimir a distância que os separa de Portugal continental? E vice-versa, que título, senão o de que os Açores são longe, podemos nós dar ainda agora, menos à distância física que à interior, à realmente vivida, que nos separa a todos do vosso maravilhoso arquipélago? (1988,57).

Como meio de conviver com esta distância, com esta insularidade, e ao mesmo tempo ultrapassá-las, numa dinâmica constituinte, que não constituída, com vista a um olhar duplo sobre as coisas, propõe João de Melo (com toda a sua geração de escritores e, logo depois, com críticos dos quais destaco Santos Barros, Urbano Bettencourt, Onésimo Almeida, Vamberto Freitas, Martins Garcia (3); entre tantos outros, que aparecem um pouco mais tarde) - propõe João de Melo, dizia eu, na esteira do grande mestre que foi Nemésio, responder ao repto deste, quando em 1932, no seu célebre artigo "" Acorianidade" , integrado na revista Insula, apelava, no V centenário do descobrimento dos Açores, que se fizessem "estudos e reflexões que ajudem a consciência açoriana a tomar conta de si mesma e contribuam para que os Açores, como corpo autónomo de terras portuguesas (um autêntico viveiro de lusitanidade quatrocentista), entrem numa de actividade renovada, de reconstrução, de esforço humano e cívico." E a resposta/proposta, de João de Melo e da sua geração a Nemésio, surge cerca de 50 anos depois, especificamente na obra Dicionário de Paixões :

a) instituir os Açores como símbolo, alegoria e memoria dum pais que deixou dispersos ou esquecidos pelas sociedades periféricas alguns dos seus grandes e insanáveis enigmas históricos; b) subverter a tradicional geografia literária de um povo, os Portugueses, que se foi longamente aquartelando nas cidades e que por isso rasura as suas próprias origens geográficas e culturais, não conhecendo a fundo a sua indentidade europeia, portuguesa, sobretudo regional; c) provar que nada há de inadequando nem de incompatível no facto de ele inverter o jogo ficcional, partindo da periferia açoriana para o centro (de Lisboa) e pretendendo ser, sucessivamente, escritor 'açoriano', 'português', 'europeu', - mas desejando apenas, e em absoluto, ser lido e estimado e entendido em qualquer pais da terra...(1994,40-41).

Posto tudo isto, não se pretende, com esta chamada de vozes autorizadas, defender, pela nossa parte, uma insularidade de pendor fatídico ou miserabilista. Penso que ficou claro que o enquadramento deste ensaio tem por objectivo (num momento em que a tendência se inclina para relativizar tudo e todos) colocar as coisas no seu lugar, para que se evitem esquecimentos, a que a História até há bem pouco tempo remetia o arquipélago. As nossas ilhas reservam até agora o

Direito à diferença (por forca mais natureza, que da própria vontade dos homens, diga-se em abono de verdade); inclinam-se, julgo eu, para a assunção duma insularidade que, já não sujeita a uma condição estática, se insere de certa forma numa infinitude de possiblidades, derivada duma consciência do lugar (considerada hoje saudável) porque desejada, porque agora espaço de resgate e de reelaboração do próprio homem, num mundo em que a globalização ameaça o nivelamento de todas as coisas e pessoas. As ilhas açorianas, por esta vida, deduz-se, contribuirão cada vez mais para a descompressão daquela realidade, no contraponto que oferecem, quando essencialmente são de pouco sol e pouca areia, e quase sem palmeiras. Um cenário à partida pouco atraente, para quem de deixa prender pelo estereótipo do imaginário insular; mas, por outro lado, um reduto de mistérios, de surpresas, de descanso; de "intervalo", na vida de todos aqueles que buscam estas terras, em compensação pelo que perderam nas suas.

E é neste sentido e contexto que o "longe", como atributo negativo ao longo dos séculos, vai assumindo hoje conotações positivas, funcionando como anti-corpus à força da referida globalização. Os traços de solidão, que também permanecem, possuem agora uma semântica de tendência positiva, porque já não defluente dum estado de "condenação" ou abandono, mas como fonte de desejo e de contraponto a um mundo fragmentado, descentrado, em que os ruídos são cada vez mais pesados (no sentido calviniano) e o silêncio mais e mais procurado como fonte de complementaridade àqueles - espaço privilegiado, por isso, de reecontro do homem consigo próprio.

No entanto, a ruptura e a descontinuidade (assentes em muita, muita água) aumenta a transitoriedade e a precaridade. A distância física entre as ilhas, e entre elas e os continentes, são factores a ter em conta, já não tanto, novamente, como anátema, mas certamente como uma realidade que ainda se sossobra a si mesma. A ilha constitui-se efectivamente, neste enquadramento, como espaço alternativo de tudo isso. Assim o provam as pessoas que nos últimos vinte anos procuram os Açores para deles fazerem a sua "pátria" (o seu torrão - de pertença )(4), ou ainda os escritores que aqui se revêem, se encontram ou se descobrem, como é o caso de António Tabucchi, a enfileirar este novo movimento: Anne Meistersheim, Romana Petri, Katherine Vaz, John Updike, Ralph Roger Glockler, Muriel Spark, Maria Orrico, Mega Ferreira, Francisco José Veigas, José Leon Machado, entre outros (5); não só escritores, mas muitos artistas (e demais pessoas), vindos na sua maioria de Europa do leste e do norte, e do continente americano também.

A este fenómeno literário, outro se lhe cruza, agora no âmbito da vida real, contanto esta terra com o retorno de alguns dos seus filhos - factor de exígua expressão ao longo da história dos Açores. E se, por lado, alguns dos emigrantes agora retornam; por outro, no que respeita aos que partem para estudar fora da ilha, no Continente ou noutra parte qualquer, é a maioria dos jovens regressa ao arquipélago. Trata-se, com efeito, dum movimento que vem revitalizar todo um tecido social, ao introduzir - seja por via do referido retorno, ou da recente imigração (agora com i) - novas gentes, com perspectivas varais e ângulos de visão necessarimente diferentes, em convergência, neste arquipélago que se situa precisamente entre três continentes, e entre o Velho e o Novo Mundo. Eis, pois, uma realidade que (já não sendo a dos veleiros que por aqui cruzaram, no passado, emprestando por essa via centralidade aos Açores)somada à expressão cultural viva destas terras, fará com que o arquipélago se projecte cada vez mais dentro e fora de si.

E é assim que "desde Gaspar Frutuoso a Nemésio e às mais recentes gerações vai o açorianos passo a passo reescrevendo, definindo e redefinindo esse seu mapa da sua existência, do seu modo de ser e estar em ilhas, da sua tradição literária, ecléctica por natureza, porque geograficamente, cruzamento entre mundos distintos, não só em civilização e cultura, mas, nos Açores, numa mundividência simultânea de muito mar e pouca, pouca terra" (Batista, 1998).

Adelaide Batista

Professora Associada
Universidade dos Açores



1   Entenda-se lugar como construção social e cultural, segundo J. Nicholas Entrikin (BARENS, 1997:300). Sem a presença dum aqui seria, segundo o mesmo articulista, difícil imaginar a existência dum sujeito activo, pois o lugar possui papel fundamental na concepção duma identidade como sujeito. O espaço, por outro lado, constitui um termo conveniente (BAKHTIN, 1981:311) para veicular o sentido de "space-time wholes", que têm vindo a fascinar a atenção de geógrafos e historiadores.
2   Mais tarde, Einstein, com a sua teoria da relatividade e dos quanta,abriria caminho para uma mais vasta implantação daquele conceito, quando advertia para a necessidade do reconhecimento do Outro, na vida de cada um.

3   J.H. Santos, O Lavrador de Ilhas, Angra, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1981,236pp; Urbano Bettencourt, O Gosto das Palavras, Angras Secretaria da Educação e Cultura, 1983, 170pp; idem, O Gosto das Palavras II, Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1995, 139pp; Onésimo T Almeida, A Questão da Literatura Açoriana, Angra, Secretaria de Educação e Cultura, 1983, 236pp; idem, Da Literatura Açoriana, Subsídios para um Balanço, Angra, Secretaria de Educação e Cultura, 1986, 327pp; idem, Açores Açorianos Acorianidade, Ponta Delgada, Brumarte, 1989, 206pp; José Martins Garcia, Para uma Literatura Açoriana, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1987, 148pp; idem, O Exercício da Crítica, Lisboa, Salamandra, 1995, 311pp; Vamberto Freitas, O Imaginário dos Escritores Açorianos, Lisboa, Salamandra, 1992, 250pp; idem, Mar Cavado. Da Literatura Açoriana e de outros Narrativas, Lisboa, Salamandra, 1998, 211pp.
4   Vide Edgar Morin ( 1998:55-56) que explica o que entende por "Terre-Patrie": "um conceito que rompe com ideia de superioridade ocidental e a sua crença no monopólio da razão. Funda-se no respeito da diversidade cultural, abertura às culturas desprezadas ou destruídas. Está em ruptura com a ideia de que a Europa está no centro do mundo e do domínio universal [...]. Afirmo que com Terre-Patrie há uma "reancestralização" em profundidade.
5   António Tabucchi, Mulher de Porto Pim (tad. Do italiano) Lisboa, Difel (1983); Anne Meistersheim, Le Géomètre de Paline, Ajaccio, Piazzala, 1994; Romana Petri, O Baleeiro dos Montes (trad. Do italiano), Lisboa, Salamandra, 1997; Katherine Vaz, Saudade, New York, St. Martins Press, 1994; John Updike, "Grandes navios verdes" (trad. Do americano), in Onésimo T. Almeida (selecção e introd.), The Sea Within. A Selection of. Azorean Poems, Providence, Gavea-Brown, 1983; Ralph Roger Glockler, Viagem Vulcânica. Uma Saga Açoriana (trad. Do alemão), Braga, Tilgráfia, 1996; Muriel Spark, Robinson (1ªed.1958), Harmondsworth, Penguin Books, 1964; Maria Orrico, Terra de Iídia, Lisboa, Salamandra, 1994; António Mega Ferreira, As Caixas Chinesas, Lisboa, Rolim, 1988; Francisco José Veigas, Crime em Ponta Delgada, Lisboa, Europa-América, 1989; José Leon Machado, Ilhado em Circe, Braga, OPSIS, 1997

 

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