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Esta terra açoriana fragmentada
e atirada a distância, pedaços de lava dispersos
pelas crateras da desaparecida Atlântida, agiu sobre a
alma insular sempre em dois sentidos opostos: - um na horizontal,
de migração para longes terras, outro na vertical,
na direcção da divindade. Expansão e recolhimento
interior - dois movimentos antagónicos com a mesma raiz
de ínsula. Dualidade conflituosa que oscila entre o intimismo
e a abertura ao mundo, entre a tensão e a distensão,
entre o silêncio e a fala com os estranhos [...]. Por
pouco não somos místicos... Por pouco também
não somos conquistadores de continentes... Ficámos
sempre a meio caminho entre o ter e o ser, entre a realidade
e o sonho, entre a realização e a frustração
- simbolicamente marcados no mapa a meio Atlântico, entre
dois mundos, sem pertencermos decididamente a nenhum...
Fernando Aires
Optei por estas palavras, como poderia ter optado
por tantas outras de tantos outros bons escritores açorianos.
É sinal - para começar - de que temos muita gente
nos Açores a pensar o seu espaço, o seu lugar (1)
e o povo, tanto na ficção como na poesia, no teatro,
no diário e na crítica. E como estamos neste Colóquio
para melhor nos conhecermos, informo desde já que apagarei
de certa forma a minha voz para, em seu lugar, vos dar uma noção
(ainda que apenas demonstrativa) de algumas das mais importantes
vozes do arquipélago - no que respeita à cultura
e literatura; ou seja, à vivência, ao imaginário
e ao pensamento - para, em conjunto, partilharmos de tudo isso,
numa perspectiva de confronto com os múltiplos universos
de cada arquipélago, nos contrastes e semelhanças
que apresentam entre si. Será, a partir desse confronto,
que cada um de nós sairá deste
Colóquio com uma nova perspectivação
sobre a sua própria realidade. E é isto, sem dúvida,
que mais me motiva a estar aqui. Até porque quanto mais
estudo a realidade ilha (Batista, 1991),
na sua unidade ou conjunto, ou no seu sistema, mais vejo nela
uma representação da própria natureza do
ser humano: do insular, por certo, sujeito que está à
dupla expressão de terra e mar, de interior e exterior,
de um cá e de um lá; mas do Homem, em geral, especialmente
neste findar de século a caminho de outro, quando, num
mundo de disjunções, de perdas e errâncias,
se apela às relações, à interdependência
e à sabedoria de se conviver simultaneamente com ambas
as realidades, num transe de contrários, cuja dinâmica
assenta na relação dialógica. Neste contexto,
estou em crer que hoje o insular se coloca numa situação
privilegiada, no sentido em que a ilha o talhou para essa
ambivalência de consequente triangulação
(na linguagem de Eva Hoffman, e, na concepção melvilliana,
conhecida por choque de reconhecimento (2)).
Uma postura que em princípio irá dominar o próximo
século, depois da queda do sistema binário, em prol
do trinário; ou seja, isto de se viver (como se lê
em epígrafe) "entre dois mundos, sem pertencermos
decididamente a nenhum". A este respeito, já dizia
Vitorino Nemésio:
Como homens estamos soldados
historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat
a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma
substância que nos penetra. A geografia, para nós,
vale outro tanto como a história, e não é
debalde que as nossas recordações escritas inserem
uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como
as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra.
Os nossos ossos mergulham no mar (Nemésio, 1932).
Trata-se efectivamente duma natureza ambivalente
que, na sua bipolaridade, não se funde, antes se digladia
e alternadamente se harmoniza, para assim permanecer num eterno
jogo de opostos. Um jogo que se nos é colocado no dia a
dia, de forma tão concerta e visível que fica "à
mão de semear": a começar por
Um sol queora se visita ora se esconde; ora
reaparece banhado na chuva que fustiga, ora parte para longes
terras remetendo a ilha para a sua concha de bruma. Um cenário
nunca igual a si próprio e que, por isso, coloca os mais
sensíveis muito próximo do "espanto",
frente ao inesperado e ao desconhecido. E tudo isto num dia. E
muitos dias, ao longo do ano, que proporcionam largos intervalos
intermitentes de revitalização e renascimento. A
pensar na irrequietação de toda esta natureza, diz
de novo Fernando Aires:
a paisagem é
um estado de alma que nos vive nos olhos, nos ouvidos, no olfacto.
Logo nos sentimentos e nos pensamentos. Se um simples movimento
a modifica, leve que seja, já não se trata da
mesma coisa. E é assim que estar num sítio não
é estar sempre no mesmo lugar, mesmo que não se
mude de lugar (Aires, 1993,21).
A constatar o raciocínio expresso neste
texto, relativamente ao "lugar",
acrescenta Fátima Borges, no tom irónico e humorista,
que lhe é muito peculiar:
Vou à procura de um lugar onde este
me saiba e de outro tempo para que este me pertença,
porque só distância responde por estas coisas[...].
Aqui é um advérbio de tempo, contra o que tão
categoricamente sempre afirmaram os fazedores de gramáticas.
(Borges, 1989,60).
Um tempo, sem dúvida, que se vai diluindo
com o desenvolvimento das últimas décadas e que
constituiu um dos mais recorrentes tropos da nossa literatura.
Até há bem poucos anos, "em casa tínhamos
horas apenas nossas"; fora, no campo, "as nossas eram
horas de sol e horas de mais ou menos" (Melo,
1988,83-84). Hoje, esse tempo é ainda uma realidade
(mais imaginária que real, certamente, mas inda sem perder
o seu estatuto de lentidão, de sabor a tempo), como o reafirmam,
nos textos mais recentes que em mão, Ivo Machado e Emanuel
Félix.
Diz-nos Ivo:
Além de registar tempo, o relógio
perde tempo; isto é, no arquipélago o tempo Do
relógio não tem importância [...]. Mas isto
só acontece no limite da ilha porque os homens têm
sempre tempo, para si e para os outros, coisa rara nas sociedades
cosmopolitas [...]. Talvez se escreva nas ilhas por causa deste
Tempo em abundância, direi mesmo, este sobejarmo-nos para
os outros (Machado, 1999).
Por sua vez, Emanuel Félix, num livro
da mais apurada poesia, num poema que se intitula "Três
postais de S. Jorge", fala-nos do tempo sagrado, ainda de
certa forma preservado (mas também ameaçado) nas
ilhas:
1.
Nas Velas, junto ao Arco
um chocalhinho breve
feriu furtivamente a superfície
de vidro
da manhã
2.
Deixei o meu relógio algures numa fajã.
Onde não contam horas nem minutos
É o tempo de Deus.
3.
Acabo de enviar um apelo veemente
aos excelentíssimos
detentores do poder municipal:
Deixem Nosso Senhor passear sossegado p'los
trilhos antiquíssimos da inefável Fajã
do Sanguinhal.
(Félix, 1997,18-20)
Este é tempo e o espaço das ilhas,
onde, como dizia Nemésio: tudo é cá tempo
em espaço pervertido. Toca-se aqui (pode-se dizer)
a crição. Na alternância da luz e das trevas,
do fundo das águas e da superfície terrestre, toda
a natureza se agita e se renova, não só através
daquilo que intuímos mas também, e claramente, daquilo
que vemos e palpamos. É a ilha na sua mais elevada dimensão
palimpsesta: eis agora, por exemplo, um vulcão a cobrir
de cinzas a terras, ora outro em eras distintas, ao largo da costa,
a lançar em implosão pedras enormes que coalham
a superfície do mar e que, logo depois, libertado o gás
que as sustenta, regressam ao ponto de partida, ao espaço
primordial (como está a acontecer ao largo da Serreta,
na ilha Terceira); noutros tempos, eis uma outra ilha e ainda
outras mais que emergem (como aconteceu nos séculos XVIII,
XIX e XX), para meses ou poucos anos depois desaparecerem, mergulhando
de novo nas águas abismais (Chaves, 1960,312-61).
E nao se trata de uma miragem; ela (a ilha de curta duração)
é com efeito real: nela se pode andar, hastear-lhe uma
bandeira, declará-la sua e logo ver-se despossuído
dela. Por outro lado, as nove ilhas, que persistiram ao longo
dos milénios, demarcam-se ainda hoje pelo efémero
e o contingente, situadas que estão geotectonicamente
(à excepção das duas mais ocidentais) num
pequeno enclave triangular, junto à fricção
das placas euro-asiática, africana e americana. A igual
feitiço, de triangulação, estão sujeitas
as próprias correntes marítimas que surgem (como
as correntes de ar) cruzadas: "as centrais, cama espessa;
e as profundas, frias, de muito sal. Parece que aquelas se geram
in loco, contra a atmosfera, e que as profundas vêm
do Atlântico. As centrais são revoltas; as profundas
são tranquilas"- diz-nos Nemésio (1974,258),
curioso que sempre foi das ciências naturais, não
só pelo que pelo elas encerram em si mesmas, mas também
como meio de encontrar nelas (através da linguagem que
lhes é específica) metáforas e imagens de
enriquecimento do seu Verbo, ou ainda paradigmas ou epistemas
para a fundamentação das suas cogitações,
ao nível daquilo que podemos entender aqui como poética
da relação (na concepção de Édouard
Glissant), sempre presente na consciência e na obra de Nemésio,
como se depreende, por exemplo, destes passagens: "O espírito
é, antes, dual. Desdobra-se para dialogar e sofre da própria
contradita, mas é ela que o alimenta e sustém, no
meio duma natureza inerte, surda e indiferente" (1932:276),
ou ainda "Há duas ordens de realidade [...] e essas
duas ordens forçam uma terceira [...], aquela que ambiguamente
vive de ambas, morrendo de contradição" (1974,19).
É na contradição (que eu
agora chamo de triangulação) que se coloca o insular,
mas, independentemente dessa condição, é
sobretudo a questão da distância que, especificamente
nos Açores, entra em jogo. A lonjura é de facto
um dos elementos primordiais da vida insular (Pelletier,
1997), pois a distância topografia, podemos dizer,
não é a distância geográfica. Esta
varia no espaço e no tempo, em função das
condições naturais a que já me referi e que
nos remetem para um longe ainda mais distante. E, depois, se é
verdade que uma ilha é um pedaço de terra rodeado
de água por lados, mais ilha o será quando
ela é também cercada de ventos fortes por todos
os lados e quando as águas revoltas dum Atlântico
em fúria a distanciam ainda mais dos continentes, num cerco
redondo, onde nem a norte, sul, leste ou oeste se "aproxima"
qualquer costa. Esta é a nossa maior especificidade, que
constitui "a matriz do modo de ser e estar do homem açoriano"
(Batista, 1993,65), sempre tão presente
na literatura açoriana. Para Nemésio, por exemplo,
"Tudo para o ilhéu se resume em longitude e apartamento.
A solidão é o âmago do que está separado
e distante" (1983,69); para Lúcia
Costa Melo (pertencente à já recente geração),
a distância fica ainda muito, muito longe:
Nunca ninguém esclarece realmente
Mais complica e fica mais distante -além
Tão distante como eu estou agora
Longe, aqui, doidamente livre - aquém -
Prisioneira da relatividade
A queimar a morta liberdade da distância
Que a gente tem dentro de nós - tão longe!
-
Como longe é aqui, mesmo nesta linha!
- que foge - neste papel, nesta voz,
Que já nem posso dizer que é minha:
Nem é voz, nem máquina, só distância
Do longe, que nunca está aqui...Aqui?
Fica ali... ...no longe...
(Melo,1979,25)
Para Martins Garcia (poeta, escritor, critico
e professor na Universidade dos Açores), torna-se imperativo
denunciar aquela lonjura:
urgente dizer distância
senão a fera crava a culpa na garganta
e o mundo pára vestibular
urgente suprimir o verbo esperança
para em seu lugar erguer distância
distância pura do nada esperar
distância estar
sabendo léguas como o facto banal
de haver o infinito além do transponível
distância vedando
o contacto de alguém-todos sob eternas cortinas
distância soberana
como a guilhotina que impede o morrer-se ontem
e cerce tonifica
a legião da afronta
a carne da distância
a impoluta
a obscena distância.
(1984,55)
Por tudo isto, torna-se claro, para nós,
que insularidade nos Açores não é
palavra vã. Vejamos: se é um facto que os estudiosos,
ligados aos assuntos insulares, se interrogam (com legitimidade)
até que ponto tudo isto é real ou ilusório
- quando nos dia de hoje (através das várias tecnologias,
dos media, da Internet, dos meios de transporte e da consequente
globalização) se encurtam distância, quando
as especificidades geográficas se anulam e os homens circulam
cada vez mais, uniformizando por essa via as diferentes formas
de viver - a verdade é que no Arquipélago ainda
se vive essa insularidade, apesar de ela se ir esbatendo, principalmente
a partir das últimas décadas.
Embora abertos ao mundo, desde sempre através
essencialmente da escrita e duma cultura particular que lhes confere
uma indelével indentidade, à qual Nemésio
veio a dar o nome de açorianidade, entendendo-a
como " o nosso modo de afirmação no mundo"
(1975,29), os açorianos assumem com
igual deferência a insularidade - qualquer coisa tão
palpável, para eles, como a terra que tem a ilha e a água
que tem o mar. É que, por mais que os contactos com o exterior
se abram (e assim o têm sido, com momentos altos e baixos,
ao longo de toda a história) o "descontinuo"
permanece, como realidade em si própria. Por isso, num
momento em que se pretende desvalorizar aquilo a que se usou chamar
de insularidade, avançando-se, recentemente - para
desnorteamento de alguns - com uma outra expressão que
se quer deixar passar por similar (refiro-me à interioridade,
própria dum continente), algo vai mal no reino da semântica,
pois a primeira pertence ao universo do " descontinuo",
que é o mesmo que dizer corte, ruptura, separação,
e a segunda ao do " continuo". Dois universos distintos
e por isso geradores de memórias, vivências e imaginários
obrigatoriamente diferentes, concentrados, no caso dos Açores,
numa galáxia de metáforas, mitos e imagens que se
prendem, no âmbito literário, com abandono,
naufrágio, orfandade, exílio,
o sentido de pedra, de não - retorno, mas
ao mesmo tempo o apego ao torrão pátrio da suas
ilhas, e a dor da não - pertença ao restante
pedaço territorial português - esse seu "drama
do saber, mas não conhecer; de compreender, mas não
viver; de amar, mas não compartilhar...e isso apenas porque
a realidade fica longe de nós" (Morais,
1991). Razão suficiente para que João de
Melo, num texto de 83, ainda hoje actual, viesse a terreiro para
explicar aos mais incautos o que é a insularidade açoriana
(permitam-me sublinhar):
Mas a insularidade, sendo embora um factor
inicial, ganha espessura nas gerações seguintes
e passa a ser um dado essencial da vida e do pensamento açorianos.
Essa palavra nem sempre existe nos dicionários; existe,
sim, emais do que no resto, no espírito de quem sente
os seus efeitos. Não é apenassinónimo de
separação, mas de solidão colectiva, e
tem naturalmente reflexosno comportamento dos homens em relação
aos outros e a si mesmos. É assimcomo um olhar para dentro
(Melo, 1982,13-14).
A distância, que está na raiz de
tudo isto, é agora abordada - através dum olhar
de fora - por Eduardo Lourenço, quando (acerca " Da
autonomia como questão cultural", titulo que deu à
sua intervenção, em 1987, na cidade de Angra do
Heroísmo) se debruça sobre o que ele considera o
"duplo e reversível distanciamento" do
Arquipélago dos Açores em relação
ao Continente:
Não vale a pena insistir neste contencioso,
embora seja ele que tenha imposta e justifique hoje o estatuto
autonomista. Se um poeta portuense contemporâneo podia
dar a um dos seus livros o título Lisboa é longe,
que título os açorianos podiam dar aos seus livros
escritos ou não escritos para exprimir a distância
que os separa de Portugal continental? E vice-versa, que título,
senão o de que os Açores são longe, podemos
nós dar ainda agora, menos à distância física
que à interior, à realmente vivida, que nos separa
a todos do vosso maravilhoso arquipélago? (1988,57).
Como meio de conviver com esta distância,
com esta insularidade, e ao mesmo tempo ultrapassá-las,
numa dinâmica constituinte, que não constituída,
com vista a um olhar duplo sobre as coisas, propõe João
de Melo (com toda a sua geração de escritores e,
logo depois, com críticos dos quais destaco Santos Barros,
Urbano Bettencourt, Onésimo Almeida, Vamberto Freitas,
Martins Garcia (3); entre tantos
outros, que aparecem um pouco mais tarde) - propõe João
de Melo, dizia eu, na esteira do grande mestre que foi Nemésio,
responder ao repto deste, quando em 1932, no seu célebre
artigo "" Acorianidade" , integrado na revista
Insula, apelava, no V centenário do descobrimento
dos Açores, que se fizessem "estudos e reflexões
que ajudem a consciência açoriana a tomar conta de
si mesma e contribuam para que os Açores, como corpo autónomo
de terras portuguesas (um autêntico viveiro de lusitanidade
quatrocentista), entrem numa de actividade renovada, de reconstrução,
de esforço humano e cívico." E a resposta/proposta,
de João de Melo e da sua geração a Nemésio,
surge cerca de 50 anos depois, especificamente na obra Dicionário
de Paixões :
a) instituir os Açores como símbolo,
alegoria e memoria dum pais que deixou dispersos ou esquecidos
pelas sociedades periféricas alguns dos seus grandes
e insanáveis enigmas históricos; b) subverter
a tradicional geografia literária de um povo, os Portugueses,
que se foi longamente aquartelando nas cidades e que por isso
rasura as suas próprias origens geográficas e
culturais, não conhecendo a fundo a sua indentidade europeia,
portuguesa, sobretudo regional; c) provar que nada há
de inadequando nem de incompatível no facto de ele inverter
o jogo ficcional, partindo da periferia açoriana para
o centro (de Lisboa) e pretendendo ser, sucessivamente, escritor
'açoriano', 'português', 'europeu', - mas desejando
apenas, e em absoluto, ser lido e estimado e entendido em qualquer
pais da terra...(1994,40-41).
Posto tudo isto, não se pretende, com
esta chamada de vozes autorizadas, defender, pela nossa parte,
uma insularidade de pendor fatídico ou miserabilista. Penso
que ficou claro que o enquadramento deste ensaio tem por objectivo
(num momento em que a tendência se inclina para relativizar
tudo e todos) colocar as coisas no seu lugar, para que se evitem
esquecimentos, a que a História até há bem
pouco tempo remetia o arquipélago. As nossas ilhas reservam
até agora o
Direito à diferença (por forca
mais natureza, que da própria vontade dos homens, diga-se
em abono de verdade); inclinam-se, julgo eu, para a assunção
duma insularidade que, já não sujeita a uma condição
estática, se insere de certa forma numa infinitude de possiblidades,
derivada duma consciência do lugar (considerada hoje saudável)
porque desejada, porque agora espaço de resgate e de reelaboração
do próprio homem, num mundo em que a globalização
ameaça o nivelamento de todas as coisas e pessoas. As ilhas
açorianas, por esta vida, deduz-se, contribuirão
cada vez mais para a descompressão daquela realidade, no
contraponto que oferecem, quando essencialmente são de
pouco sol e pouca areia, e quase sem palmeiras. Um cenário
à partida pouco atraente, para quem de deixa prender pelo
estereótipo do imaginário insular; mas, por outro
lado, um reduto de mistérios, de surpresas, de descanso;
de "intervalo", na vida de todos aqueles que buscam
estas terras, em compensação pelo que perderam nas
suas.
E é neste sentido e contexto que o "longe",
como atributo negativo ao longo dos séculos, vai assumindo
hoje conotações positivas, funcionando como anti-corpus
à força da referida globalização.
Os traços de solidão, que também permanecem,
possuem agora uma semântica de tendência positiva,
porque já não defluente dum estado de "condenação"
ou abandono, mas como fonte de desejo e de contraponto a um mundo
fragmentado, descentrado, em que os ruídos são
cada vez mais pesados (no sentido calviniano) e o silêncio
mais e mais procurado como fonte de complementaridade àqueles
- espaço privilegiado, por isso, de reecontro do homem
consigo próprio.
No entanto, a ruptura e a descontinuidade (assentes
em muita, muita água) aumenta a transitoriedade e a precaridade.
A distância física entre as ilhas, e entre elas e
os continentes, são factores a ter em conta, já
não tanto, novamente, como anátema, mas certamente
como uma realidade que ainda se sossobra a si mesma. A ilha constitui-se
efectivamente, neste enquadramento, como espaço alternativo
de tudo isso. Assim o provam as pessoas que nos últimos
vinte anos procuram os Açores para deles fazerem a sua
"pátria" (o seu torrão - de pertença
)(4), ou ainda os escritores que
aqui se revêem, se encontram ou se descobrem, como é
o caso de António Tabucchi, a enfileirar este novo movimento:
Anne Meistersheim, Romana Petri, Katherine Vaz, John Updike, Ralph
Roger Glockler, Muriel Spark, Maria Orrico, Mega Ferreira, Francisco
José Veigas, José Leon Machado, entre outros (5);
não só escritores, mas muitos artistas (e demais
pessoas), vindos na sua maioria de Europa do leste e do norte,
e do continente americano também.
A este fenómeno literário, outro
se lhe cruza, agora no âmbito da vida real, contanto esta
terra com o retorno de alguns dos seus filhos - factor de exígua
expressão ao longo da história dos Açores.
E se, por lado, alguns dos emigrantes agora retornam; por outro,
no que respeita aos que partem para estudar fora da ilha, no Continente
ou noutra parte qualquer, é a maioria dos jovens regressa
ao arquipélago. Trata-se, com efeito, dum movimento que
vem revitalizar todo um tecido social, ao introduzir - seja por
via do referido retorno, ou da recente imigração
(agora com i) - novas gentes, com perspectivas varais e ângulos
de visão necessarimente diferentes, em convergência,
neste arquipélago que se situa precisamente entre três
continentes, e entre o Velho e o Novo Mundo. Eis, pois, uma realidade
que (já não sendo a dos veleiros que por aqui cruzaram,
no passado, emprestando por essa via centralidade aos Açores)somada
à expressão cultural viva destas terras, fará
com que o arquipélago se projecte cada vez mais dentro
e fora de si.
E é assim que "desde Gaspar Frutuoso
a Nemésio e às mais recentes gerações
vai o açorianos passo a passo reescrevendo, definindo e
redefinindo esse seu mapa da sua existência, do seu modo
de ser e estar em ilhas, da sua tradição literária,
ecléctica por natureza, porque geograficamente, cruzamento
entre mundos distintos, não só em civilização
e cultura, mas, nos Açores, numa mundividência simultânea
de muito mar e pouca, pouca terra" (Batista,
1998).
Adelaide Batista
Professora Associada
Universidade dos Açores
1 Entenda-se
lugar como construção social e cultural,
segundo J. Nicholas Entrikin (BARENS, 1997:300). Sem a presença
dum aqui seria, segundo o mesmo articulista, difícil
imaginar a existência dum sujeito activo, pois o lugar
possui papel fundamental na concepção duma identidade
como sujeito. O espaço, por outro lado, constitui
um termo conveniente (BAKHTIN, 1981:311) para veicular o sentido
de "space-time wholes", que têm vindo a fascinar
a atenção de geógrafos e historiadores.
2 Mais tarde, Einstein, com a sua teoria da
relatividade e dos quanta,abriria caminho para uma mais vasta
implantação daquele conceito, quando advertia para
a necessidade do reconhecimento do Outro, na vida de cada um.
3 J.H. Santos, O Lavrador de Ilhas, Angra,
Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1981,236pp;
Urbano Bettencourt, O Gosto das Palavras, Angras Secretaria da
Educação e Cultura, 1983, 170pp; idem, O Gosto das
Palavras II, Ponta Delgada, Jornal de Cultura, 1995, 139pp; Onésimo
T Almeida, A Questão da Literatura Açoriana, Angra,
Secretaria de Educação e Cultura, 1983, 236pp; idem,
Da Literatura Açoriana, Subsídios para um Balanço,
Angra, Secretaria de Educação e Cultura, 1986, 327pp;
idem, Açores Açorianos Acorianidade, Ponta Delgada,
Brumarte, 1989, 206pp; José Martins Garcia, Para uma Literatura
Açoriana, Ponta Delgada, Universidade dos Açores,
1987, 148pp; idem, O Exercício da Crítica, Lisboa,
Salamandra, 1995, 311pp; Vamberto Freitas, O Imaginário
dos Escritores Açorianos, Lisboa, Salamandra, 1992, 250pp;
idem, Mar Cavado. Da Literatura Açoriana e de outros Narrativas,
Lisboa, Salamandra, 1998, 211pp.
4 Vide Edgar Morin ( 1998:55-56) que explica
o que entende por "Terre-Patrie": "um conceito
que rompe com ideia de superioridade ocidental e a sua crença
no monopólio da razão. Funda-se no respeito da diversidade
cultural, abertura às culturas desprezadas ou destruídas.
Está em ruptura com a ideia de que a Europa está
no centro do mundo e do domínio universal [...]. Afirmo
que com Terre-Patrie há uma "reancestralização"
em profundidade.
5 António Tabucchi, Mulher de Porto
Pim (tad. Do italiano) Lisboa, Difel (1983); Anne Meistersheim,
Le Géomètre de Paline, Ajaccio, Piazzala, 1994;
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