ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA - Portugal via E-Mail


Antes de entrar directamente na crónica de hoje, sinto-me tentado a fazer um breve prefácio, já que o tema surgiu de uma conversa na auto-estrada electrónica, a Internet.

Na Pt-net, a rede de conversação portuguesa, em que participam sobretudo patrícios residentes no estrangeiro, anda um debate algo assanhado sobre o trazer-se para os jornais assuntos tratados ali. A questão não me dizia respeito, mas intrigou-me como é que se pode entrar num meio de conversa mundial, aberto a quem quiser, e ainda considerá-lo domínio Privado?

Bom, seja como for, por mim estou à vontade a contar a história que se segue, porque nada tem a ver com a Pt-net. Chegou-me por correspondência electrónica, é verdade, mas a mim exclusivamente a dirigiu um já nestas páginas mencionado amigo de ecrã, em Coimbra sito, e ele não se opõe a este uso público de histórias geradas na nossa troca de e-mail. Escrevia-me há tempos a contar que, demonstrando a um colega seu como conseguira o meu endereço electrónico, lhe mostrara também como é hoje possível saber tanta coisa ao simples toque de algumas teclas. Num ápice, chamou ao seu ecrã as listas dos indivíduos com nome português nos quadros da Universidade de Brown - funcionários, professores e administradores. Pediu os Silvas, os Sousas, os Ferreiras e os Costas e ficou a saber sobre eles, entre outras coisas, a função que desempenhavam. Ao que terá observado o colega: "Já reparaste nas profissões deles?" Eram quase tudo funções menores. Daí o comentário adicional: "Num instante obtivemos um retrato do nosso país."

O episódio dá para uma miríade de reflexões. Nos seus traços gerais, não é falso o dito retrato socioeconómico dos emigrantes. Diz-nos, de facto, algo sobre os emigrantes recentes e o que podem fazer num mundo que lhes é alheio na língua e nos hábitos. Mas a informação cultural, obtida apenas através dos nomes próprios, não nos leva muito longe. As gerações anteriores americanizaram os apelidos para evitarem a associação com um grupo que não tinha bom cartel - os portugueses. Sem esquecer, obviamente, que o fizeram por outros motivos: antes do actual multiculturalismo e da respectiva valorização dos diversos grupos étnicos, vigorava a ideologia da homogeneização, necessária para o desenvolvimento de uma consciência e identidade nacionais. Hoje, nem as listas de telefone nem as listagens computorizadas nos dizem muito sobre um século e meio de emigração portuguesa para os Estados Unidos. Pereira deu Perry, Ferreira passou para Smith, Carvalho transformou-se em Oak, Lourenço em Lawrence, Coelho em Koele, Simões em Simmons, e um nunca mais acabar de transformações originais. Na minha já avantajada colecção contam-se algumas especialmente doces. Uma é a de um tal Joe King, de Provincetown, que eu julgara a tradução de José Reis e era, afinal, a resultante de uma simples divisão a meio e subsequente americanização de Joaquim. A outra é a de um poeta descendente de portugueses que assina os seus escritos por Art Cuelho. Corruptela naturalíssima, cuja responsabilidade tanto pode caber aos burocratas como aos próprios portugueses que não sabiam escrever o seu nome. O Art queria publicar as traduções portuguesas dos seus poemas e eu tentei convencê-lo a escrever o seu nome segundo a ortografia portuguesa. Depois de muito esforço meu, lá cedeu. Mas nos seus poemas em inglês mantém Cuelho, pois aquele u faz tanto parte da sua identidade como o nariz e os olhos que tem.

E também não transparece na lista electrónica que muitos destes empregados poderiam ter ido bem mais longe se tivessem sido outras as oportunidades. Alguns já vieram a tempo de as acharem. Mas ainda há três décadas a ideologia americana da assimilação não perdoava. Não há muitos anos soube eu de um tal Horace Martin, professor catedrático (e quase jubilado) de Medicina na minha própria universidade, que era Horácio Martins, nado e baptizado na Ribeira Grande, nos Açores, nada mais nada menos. Veio para os Estados Unidos aos 10 anos e depressa se apercebeu de que um nome inglês sempre era um nome inglês. Disfarçado o sotaque, o resto foi decerto fácil, que cérebro como os outros e uns pós de esperteza também não faltavam lá pelas ilhas.

Não resta, porém, dúvida de que o Portugal emigrado é uma réplica, com todas as tonalidades positivas e negativas, do Portugal que lá ficou. E era só até aí que queria chegar o comentário do colega do meu correspondente electrónico. O resto é da minha responsabilidade. Naturalmente. Vejo-os por aí, perfeitamente adaptados ao ritmo e estilo de trabalho americanos. Muitas vezes em overtime para o cheque no fim da quinzena crescer um pouco mais. Um deles contava-me há tempos que a mulher ficara desapontada com a sua oferta de Natal. Esperava um anel de diamantes. E o José explica-se-me: "Eu perguntei-lhe: sabes quantas casas de banho eu tinha de limpar na Brown para te comprar um anel de diamantes?"

No entanto, nem ele nem a mulher se poupam às horas extraordinárias para poderem dar o estudo aos filhos, como me diz o José Martins. E, porque me viu rir às gargalhadas com a graça do anel de brilhantes, acrescentou' "Você sabe o que custam as universidades nesta terra. Imagine só quantas casas de banho ainda tenho à minha frente!"

Março de 1995

pp. 119-122