Rogério Silva - A Arte de um outro mundo

 


Rogério Silva 1929 - 2006

Ao Rogério Silva, encontrei-o eu, pela primeira vez, num mural da Horta. Já oubira falar dele, mas o conhecimento não dava, ainda, para descobri-lo ali naquela parede da Insulana numa estilização de baleias, baleeiros e Pico. Quedei-me na contemplação dos traços dinâmicos fora do tradicional e já não sei o que fora lá fazer. Depois, percebi as semelhanças entre aquelas cores e motivos e as capas da revista Gávea que pela mão do Rogério, Almeida Firmino e Emanuel Félix, nos anos cinquenta (criança nessa altura, eu só a conheci passados anos) tentou acordar Angra de uma letargia antiga.
Mas quem me badalou mais ao ouvido sobre o pintor, em letra de forma, foi o Carlos Faria, que nos porões dos navios trazia de Lisboa medicamentos de mistura com telas e poemas. Dos medicamentos, as farmácias saberão. Os poemas esses via-os plantados no suplemento “Glacial”, de A União, onde o Karlos Faria, com K fazia leitores jovens,como eu era, vibrar de espanto. Volta e meia, o Karlos clamava no deserto anunciando o Rogério e a nova arte que ele desbravava no arquipélago.
O Karlos trazia quadros e mais quadros. Ele e o Rogério não se cansavam de organizar exposições em Angra e ilhas adjacentes. O Rogério, pedagogo pacientemente didáctico, acompanhava visistas guiadas para audltos, jovens e crianças de escola. Foi assim que em Angra tivemos acesso a trabalhos de António Palolo, Bartolomeu Cid, Artur bual, Nadir Afonso, Costa Brites e do próprio Rogério Silva, que beneditino se fizera apóstolo das novas formas estéticas pintando quadros com os Açores em movimento a procurar vencer o marasmo secular ilhéu – moinhos de vento de velas enfunadas, baleias astutas domadas por ainda mais astutos baleeiros, nuvens agitadas descobrindo céus e anunciando azul para um futuro breve.
Entretanto, perdi-me una anos por Lisboa e noutros livros. Nos alvores da década de setenta, já com os costados na Nova Inglaterra, descobri-me de súbito novamente vizinho de Rogério. Aconteceu numa festa num parque em New Bedford que, insistia o Heldo em livro de poerma (nunca publicado), um dia viria crescer rosas em Novembro. O Rogério acreditava e pintava. A escolado seu bairro, ali à Coggeshall St, os arranha céus de azul límpido por detrás da wasteland de ferro-velho, imigrantes divididos e distraídos no jogo em tarde de tasca-sem-fim. Mas sempre as cores luminosas e os traços firmes apontando par afuturos optimistas a emergirem dos caos, ordem e tranquilidade a renascer de caixotes opressivos fábricas escuras e tristes onde ele aliás suou copiosamente.
Vierma planos. A editora Gávea-Chama, lugar da primeira edição do meu Ah! Mònim dum Corisco! Depois a idéia da revista Gávea-Brown que ele quis muito fosse continnuação do antigo projecto Gávea. Integradas em eventos gerados pelo entusiasmo dos meus verdes anos, surgiram exposições da sua obra por aqui e por ali, causando admiração porque um greenhorn supostamente não pintaria assim – Brown, Cambridge, Boston e outros lugares que não recordo com exactidão, porque escrevo de cor, em férias, surpreendido pela notícia da morte do Rogério e sem poder recorrer a nada a não ser o que a memória guarda na caixa do pronto a lembrar.
Espantoso de ver era a minúcia com que o Rogério preparava cada exposição até o pormenor da maqueta com reproduções em miniaturas dos quadros, a caixa que ele construía para cada pintura que ele próprio emoldurava, tudo num primor de perfeição chinesa.
Entretanto os anos foram passando. Era preciso que o Rogério deixasse de ser de um mundo que já não existia, o dos Açores que o moldaram, e palmilhasse Américas despudoradas para se fazer presente, convencer galerias a exporem os seus quadros, conhecer os meandros das bolsas ou investir dinheiro que não tinha par aque a sia arte fosse reconhecida. O Rogério chocava-se porque “a arte é arte e nã o se suja” Pelo menos a arte do Rogério, ou tal como ele a concebia. Esquecia-se que mesmo Miguel Ângelo, Rafael e Leonardo nada teruam feito se nao fossem os necenas, papas, cardeais e duques com a grana que paga as tintas e mata a fome do artista. O Rogério não acreditava. Nos Açores do seu tempo, tudo fluía sem massa, embora não se esquecesse nunca do facto crucial de ter sido por um mal-entendido nessa matéria que fora ele próprio bater com os ossos nos States, quando um Instituto lhe pediu um trabalho como devia ser e ele despendeu a soma que achava necessária por exigências da arte em si. Cehgada , porém a conta, mingou o dinheiro porque ninguém alguma vez supusera que as coisas da arte custassem assim tanto, e o Rogério deu de repente consigo numa fábrica de New Bedford para poder pagar as prestações.
E, todavia, ele sonhou sempre com o regresso porque, nos seus idílicos Açores, a Cultura, e sobretudo a Arte, escreviam-se com maiúscula, em letra pura, quase sobrenatural. Se nos Açores o asceta Rogério vivia nas nuvens, em New Bedford viveu das nuvens.
A última vez que me cruzei com ele aconteceu em Vila do Porto, Santa Maria. Tinha realizado o sonho do regresso a casa (nascido no Faial em 1929, creio eu era à sua adoptiva Angra que chamava pátria) e viajava de ilha em ilha, de novo apóstolo da arte ensinando nas escolas o que ela é e como se faz. Mas a desilusão estava-lhe plantada nos olhos. Os tempos haviam mudado e também ele não reencotnrara a ilha de onde em tempos partira. A seu ver, a arte estava bastante conspurcada, vendia-se e comprava-se por alto preço. Por todo lado encotnrava banha de cobra a valer fortunas, e as gentes estonteadas com a pimenta das Índias europeias, chegada de Bruxelas em chorudos pacotes, construíram casas de paredes amplas a exigirem pinturas a metro. Qualquer Chico Esperto agarrava de um pincel, e logo ali, com a mão direita rabiscava umas patranhas, enquanto contava cifrões n aalgibeira com a esquerda. Para culminar o desaire, e a sua idéia de ater como missão esvaíra-se com os tempos, a linguagem artística era outra, os rostos idem, e o Rogério sentiu-se peixe fora das suas águas familiares.
O Rogério também não se sentia mais da sua terra. New Bedford estava definitivamente longe, e a Lusa, seu arrimo sólido, incondicional apoiante e dedicadíssima companheira, escondia uma doença que a levou. Nos anos que se seguiram, o Rogério deixou de existir para o exterior, e porventura para si próprio. Enconchou e fez-se lapa na pedra da sua mamória, sem nunca mais abrir para ninguém.
Agora chegou de Angra, via João Afonso, talvez o seu mais perene amigo, a notícia de que partiu para um outro mundo. Partiu nada! O Rogério nunca viveu neste. Se partiu, foi para onde sempre esteve. Quem, com oeu, teve a sorte de o ver, foi apenas contemplado pelas suas aparições. Que ficaram indeléveis. Ajudadas, lembrá-lo diariamente lá em casa.
Ou em qualquer lugar. Como aqui mesmo, neste mar algarvio, sem baleias.