ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA - A Dupla Vilalania


Uma vez, num congresso mundial de Filosofia na Cidade do México, aconteceu encalhar eu para almoço numa mesa com um pequeno grupo de professores de universidades de província. Durante toda a refeição queixaram-se de os seus colegas da capital lhes não ligarem nenhuma, tão ocupados andavam a fazer a corte aos grandes senhores filósofos da Europa e da América do Norte. De seguida, fui dar comigo assistindo a um plenário onde os mais badalados nomes da filosofia latino-americana - os mexicanos incluídos - metralhavam impropérios contra a arrogância filosófica europeia e norte-americana por não ligar nenhuma ao pensamento da periferia, naquele caso, da América Latina.

Parece familiar, não? A gente fala com portugueses e ouve as queixas e acusações: os alemães são racistas. Os franceses, idem. Tratam mal os imigrantes. Muitos deles nossos. Os americanos discriminam contra os negros. E até um português, educado na crença da multirracialidade lusíada, vai para a América uns anos e já volta a férias racista também, vítima daquela sociedade perversa.

Recordo-me de há uns anos, de passagem em Portugal, ter participado numa mesa-redonda sobre a exploração da mulher nos Estados Unidos. "E em Portugal?" - perguntei. "Não, não tem comparação!" - garantiram-me.

E é verdade, claro! Basta contemplar a história: a colonização espanhola foi violenta, a nossa foi branda. Os ingleses e holandeses criaram o apartheid, nós miscigenámos. Os americanos discriminam contra os cidadãos negros, nós somos multirraciais. Achamos apenas que os cabo-verdianos, por escolha própria, já não são portugueses e por isso deveriam estar no seu país. Os alemães e franceses maltratam os emigrantes, nós simplesmente cumprimos as leis da UE pondo uns quantos brasileiros na rua.

Não importa aqui saber os pormenores dos últimos incidentes com os brasileiros. 0 tom reconhece-se no ar. Afina com a melodia da música tradicional da duplicidade de bitola nos nossos juízos de valor quando nos comparamos com outros povos. Sartre deve ter descoberto à nossa custa essa ideia de o inferno ser o outro.

Da boca de tantos portugueses eruditos eu ouvi já inúmeras vezes a acusação de hipócrita duplicidade à atitude americana para com os emigrantes e os negros - uma coisa é o credo ideológico e outra a prática quotidiana. Evidentemente que nada disso se passou com os brasileiros em Portugal. Continuamos a sen6r-nos povos irmãos, nem sequer separados pela mesma língua, como alguém ironizou a propósito de ingleses e americanos. E não é correcto isso de se considerar actual a crítica de Eça quando dizia que em conversas, entre amigos, no café, se é inesgotável de facécia sobre o brasileiro (o de torna-viagem ou outro qualquer da terra dos papagaios), mas que no jornal, no discurso ou no sermão se é inexaurível de glorificações ao Brasil' "Em conversa é o macaco; no jornal é a nação irmã!" Absolutamente falso. E nunca o foi tanto como agora, com a dupla cidadania.

Não. Os portugueses não são racistas. Os portugueses não discriminam. Os brasileiros são os nossos irmãos. Só que os preferimos na TV.

E no Brasil.

pp. 59-61