VICTOR RUI DORES - Vitorino Nemésio e a cidade da Horta


No mês de Maio do ano de 1918, Vitorino Nemésio, então com 16 anos de idade, desembarcava, pela primeira vez, na cidade da Horta. A vida não lhe corria de feição em termos de sucesso escolar, pois um ano antes, sofrera vários desaires estudantis (entre os quais a reprovação do 5º ano), e, por isso mesmo, deixa a sua ilha Terceira e resolve apresentar-se a exames, como aluno externo, no então Liceu Nacional da Horta.

Nas suas Notas Autobiográficas (escritas em 1971 a pedido de David Mourão-Ferreira), Nemésio relata que, nesses exames, contou com a complacência dos professores Simão de Roches da Cunha Brum (mais conhecido por Barão de Roches), que lhe passou o ponto de Ciências, e Florêncio Terra, "excelente contista, mas severo em Matemática, deu-me 10. E passei". (1)

Mas não só. Numa pesquisa que realizei no Arquivo da agora Escola Básica 3/Secundária Dr. Manuel de Arriaga, percorrendo o "Indice alfabético dos indivíduos que têm feito exames neste Liceu Nacional da Horta" (folha 125), encontrei os Termos de Exames de Alunos Externos do Curso Geral (Livro 31, folha 79), onde se encontram os resultados das provas escritas e orais obtidos por Nemésio no exame do 5º ano. Assim, nas Provas escritas foram-lhe dadas as seguintes notas: Composição em portuguez- 15 valores; Composição em francez- 10 valores; Tradução de latim para portuguez- 11 valores; Tradução de portuguez para inglez: 10 valores; Exercício mathematico: arithmetica, algebra e geometria: 10 valores; Exercício de physica- 12 valores; Exercício de desenho: 8 valores. Nas Provas orais do mesmo exame o nosso jovem escritor foi "corrido" a 10: Portuguez- 10 valores; Latim: 10 valores; Francez: 10 valores; Inglez: 10 valores; Geographia: 10 valores; Mathemática: 10 valores; Sciencias naturaes: 10 valores. Desenho: 10 valores.

Nemésio concluía, assim, o Curso Geral dos Liceus, no dia 16 de Julho de 1918, com a qualificação final de "dez valores, suficiente". O Presidente do Júri era constituído por Florêncio José Terra, sendo vogais Manuel Agostinho Simas, Simão de Roches da Cunha Brum, Francisco Espínola de Mendonça e Alexandre Fernandes da Costa Feijão.

A estada de Nemésio na cidade da Horta durou de Maio a Agosto de 1918. Na sua edição de 13 de Maio, o jornal "O Telégrafo", na sua secção Noticiário dava conta: "Para completar o curso geral dos liceus encontra-se na Horta o sr. Vitorino Nemésio, autor do livro Canto Matinal, de Angra do Heroísmo". E na edição de 13 de Agosto do mesmo ano, noticiava aquele jornal: "Retirou a Angra o sr. Victorino Nemésio, que à Horta viera fazer o exame do 5º ano do liceu". (Curioso: um obscuro "fedelho" de 16 anos com honras de notícia de jornal...).

Durante esse período de tempo, o "tímido rapazinho" vai conhecer, na Horta, pessoas de quem falará, mais tarde, no romance Mau Tempo no Canal. Foram elas, entre outras: o dr. José Machado de Serpa, senador da República e estudioso; o padre Nunes da Rosa, contista e, na altura, professor do Liceu da Horta; Osório Goulart, poeta parnasiano; o dr. Neves, político e polemista; o comendador Bulcão; a poetisa e pedagoga Silvina de Sousa (que utilizava o pseudónimo de Iracema); o maestro Simaria, cujo nome, na referida obra, surgirá grafado em Sigmalia. Será ainda apresentado em casa das senhoras Arriaga, irmãs de Manuel de Arriaga, "modelos das Streets do romance" e tornar-se-á íntimo da família Goulart Medeiros. (2)

Esta permanência de Nemésio na Horta haveria de marcar profundamente o escritor adolescente que, por essa altura, para além de ser autor de Canto Matinal, seu primeiro livro de poesia (publicado em 1916), dera ainda à estampa O Poeta Povo (texto de uma conferência sua publicada em 1917); além disso havia ele já colaborado no jornalzinho O Eco Académico (semanário dos alunos do Liceu de Angra), e dirigia então o semanário Estrela d´Alva, intitulado de "revista literária, ilustrada e noticiosa" editada, tal como as anteriores publicações, por Manuel Joaquim de Andrade, cujo prelo funcionava na Rua Direita, em Angra do Heroísmo.

Em 1918, em pleno final da Primeira Grande Guerra, a Horta vivia o apogeu de uma prosperidade económica iniciada em meados do século XIX, pela família Dabney, com as riquezas que provinham da laranja, do vinho, da baleia e do carvão. Possuindo um comércio marítimo intenso e uma impressionante animação nocturna, a cidade era então porto de escalas obrigatório, local de reabastecimento de frotas e de repouso da marinhagem. As suas ruas fervilhavam de militares, marujos, gente de todas as nacionalidades e raças. Além disso, estavam na Horta instaladas as companhias dos Cabos Telegráficos Submarinos, que convertiam a cidade num "nó de comunicações" mundiais. De resto, os americanos, os ingleses, os alemães e os italianos dos "Cabos" haveriam de deixar profundas influências sociais, culturais e desportivas no meio faialense.

Deixando a então mais pacata e isolada cidade de Angra do Heroísmo, é este ambiente cosmopolita que Nemésio vai presenciar, o que terá contribuído, decisivamente, para que ele viesse, mais tarde, a escrever essa obra mítica e irrepetível que dá pelo nome de Mau Tempo no Canal, publicado em 1944 mas trabalhado desde 1939, cuja acção decorre nas ilhas Faial, Pico, S. Jorge e Terceira, sendo que o núcleo da intriga se desenvolve na Horta. Naquela obra ele recriará a "atmosfera" desta cidade. Recorde-se que o romance evoca um período (1917-1919) que coincide em parte com a sua permanência na ilha do Faial.

Nemésio vem encontrar, na cidade da Horta, ventos de mudança e sinais de modernidade. Ao visitá-la pela segunda vez, em 1946, haveria de escrever em Corsário das Ilhas: "Gosto da Horta como de nêsperas. Tinha saudades do que fui, já nem sei bem como, aqui. Todo o imaginado é mais ou menos frustrado quando o realizamos; mas na Horta não é excedido (...). Matriz no alto onde foram as casas do donatário flamengo e que os jesuítas adaptaram, como sempre, cubicular e faustosamente, mais duas ou três igrejas conventuais nos altos; a cada ponta, ou sainte, as paróquias da Conceição e das Angústias, e o mais que é preciso para completar uma cidadezinha airosa alva como uma noiva - Horta". E após referir que a cidade "ficou secularmente fiel ao pacato destino que lhe marcara Jos de Huertere, o seu primeiro Capitão e fundador flamengo", acrescenta: "Horta de 1918... no fim da Grande Guerra fui encontrá-la remoçada, de "maillot" e de guiga de regata (...). Horta! For ever! Sailors are welcome… "Okay". (3) Nessa mesma obra, Nemésio fala dos "primores do acolhimento, a hospitalidade patriarcal, a gentileza em tudo e por tudo". Fascinou-o essa Horta "telegráfica e carvoeira", que "hospedava galhardamente navios-escolas de todos os pavilhões internacionais", assumindo "um arzito fresco, cosmopolita", onde o inglês e outros idiomas se ouviam pelas ruas e lojas com frequência.

Aos 16 anos de idade, nas suas pausas de estudo, Nemésio passeia-se pela Rua do Mar, contempla os navios e os barcos ancorados no porto da Horta, come queijinho fresco na Yankee House ( que será mais tarde lembrado em Mau tempo no Canal), lê n´O Telégrafo, as notícias da Guerra, participa num "garden-party" no Palacete de Pilar, por mais de uma vez sobe ao Monte das Moças para visitar o Observatório Meteorológico, fica impressionado com o movimento da Casa Bensaúde (Fayal Coal), faz compras nos Grandes Armazens Faialenses, assiste, no Salão Eden, a uma ou outra sessão cinematográfica e, no Teatro Faialense, a uma ou outra comédia, ou opereta, acompanhado de Machado Serpa frequenta uma ou outra tertúlia e visita, pela mão de Osório Goulart, a Sociedade "Amor da Pátria" (cujo nome, no aludido romance, ele há-de mudar para Real Clube Faialense, o que não deixa de ser interessante, sabido que o "Amor da Pátria", fundado a 28 de Novembro de 1859, começou por ser uma Loja Maçónica).

Nemésio fixa a geografia humana, geográfica e afectiva da Horta, capta esse "espírito do lugar". O seu olhar arguto vai surpreender as meninas de boa roda faialense a praticarem remo e vela na baía da Horta, a jogarem ténis no Fayal Sport e nos "courts" das Companhias, ou a tomarem banho em fato de malha na praia Porto Pim, práticas que eram então muito pouco vulgares nas cidades de Angra e Ponta Delgada. Não lhe é indiferente as estrangeiras do Cabo, a galope de cavalo, com os cabelos ao vento... O jovem escritor ficará impressionado com esta "Horta desportiva e inglesada", onde as mulheres fumavam nos Cafés... Assiste às manobras do oficialto casadoiro, está atento à "fala cantada e doce do Faial" e, em Mau Tempo no Canal falará, várias vezes, sobre a beleza das raparigas faialenses: "Há tanta rapariga bonita nesse Faial".

Em 1928, em Coimbra, Vitorino Nemésio recordará, em Sob os Signos de Agora, a sociedade da Horta, dedicando especial atenção às referidas jovens faialenses desembaraçadas, desportistas e independentes que ele conhecera dez anos antes:
"Na Horta a vida de sociedade é talvez menos discreta, menos passada à fieira da compostura e da pragmática. Por isso mesmo, toma as formas desembaraçadas do sport e da dança: e é afoita porque sacrifica ligeiramente à forte nudez da verdade os tropeços da fantasia... Uma menina faialense de boa roda não se peja de mergulhar de "maillot" ou percorrer a Rua do Mar dando o braço a um inglês. Verdade seja que se expõe ao escárnio dos demais. Não importa. Está no seu papel de civilizada: cumpre as leis da sua raça magnífica". (4)

Segundo Heraldo Gregório da Silva (5), deriva provavelmente de tal apreço por esse ideal de mulher a tendência artística de Nemésio representar o Faial e a sua capital sob as formas femininas de "menina" e "donzela", "cara fêmea", "banhista de maillot" e até na forma latina de insula puellarum, isto é, ilha das meninas, conforme nos é dito em Mau Tempo no Canal. Assim, para Nemésio, "o Faial é discreto e feminino"... e "a Horta sempre teve na sua imaginação uma espécie de cara fêmea: não sei quê de donzela, de amor que não se teve, de adolescência sumida" (6)

Porém, diferente é a atitude de Nemésio em relação aos progenitores das famílias "smart" do Faial. No primeiro capítulo de Mau Tempo no Canal, Margarida, após ter sentido na pele as verdascadas que lhe foram infligidas pelo pai (por ter estado à conversa com João Garcia), desabafa com a criada Maria das Angústias:

"Namoro porque quero! Tanta proa, tanta presunção de serem as primeiras famílias do Faial, quando não passam de uns brutos".

E será ainda pela boca de Margarida que Nemésio denunciará os pruridos de casta e classe dessas famílias:
"O tio creia que estas senhoras da Horta não sabem que estão neste mundo senão quando a vida corre mal. Foram criadas com tolices: não vivem senão para o Real Clube Faialense e para as festas a bordo, quando vem uma esquadra à Doca". E denuncia que "O meio é mesquinho, é... Uma gente fechada" e que, na Horta, vigora uma "moral extremamente chique" e "um vasto sistema mexeriqueiro"...

É ainda nesta sua obra maior que Nemésio há-de escrever esta lapidar descrição: "A Horta é um camarote de frente para o Pico, palco de todo o ano". E há-de também cometer uma ou outra imprecisão geográfica, um ou outro erro de palmatória que qualquer faialense ou picaroto dificilmente perdoará. Alguns exemplos:

1. Do Pasteleiro é impossível avistar-se a Doca, porque de permeio está lá o Monte da Guia.

2. Do Campo Raso, na ilha do Pico, é impossível ver-se um incêndio na Rua de Jesus, cidade da Horta (curiosamente foi na casa nº 1 dessa mesma rua onde Nemésio ficou hospedado enquanto se preparava para os exames de Liceu).

3. Erradamente, Nemésio situa os baleeiros num lugar onde raramente se arriou à baleia: S. Mateus do Pico. Na ilha montanha, os baleeiros abundavam sobretudo nas Lajes, Calheta de Nesquim e Cais do Pico.

4. Nemésio põe, na boca de baleeiros picarotos, pronúncias, sotaques e variantes dialectais que, na realidade, pertencem a falantes da ilha Terceira e de que é exemplo a utilização do i intervocálico, característica da pronúncia terceirense. Alguns exemplos de algumas falas desses baleeiros:

"Quem põe navalha na cara nã dá oividos a um velho canoco com´a (i)este".
"Os oitros bem que se chegam".
"Está uma mulher feita, com aquele feitio destoiçiado".
"Ai Sinhor Santo Amaro! qu´ele nem siquer le passa a barba do harpão polo toicinho"...
"A Gazela aparelhou p´ra nossa (i)arte e eu que estava casado e cheio de meninos"...
"... a beber vuinho"... (vinho) (7)

De resto, em Julho de 1960, Vitorino Nemésio (que haveria ainda de vistar a ilha do Faial por mais duas vezes: 1963 e 1971) confessou a José Martins Garcia, a bordo do "Carvalho Araújo", que as personagens de Mau Tempo no Canal eram decalcadas de gente da ilha Terceira. "Claro que toda essa gente é da Terceira... O Faial e o Pico deram-me apenas um "habitat" (8). E acrescentou que o enredo familiar e amoroso de Margarida Clark Dulmo e dos diversos pretendentes não derivava de nenhum facto ocorrido no seio de qualquer família faialense. Nemésio operara a transposição do enredo, na realidade próximo de famílias terceirenses, para o ambiente da cidade da Horta que lhe foi dado conhecer na juventude. Por conseguinte, a Horta funciona, no romance, como uma projecção e como um disfarce de Angra do Heroísmo.

Mas deixemo-nos de "petites histoires", sabido que é próprio do escritor criar, inventar, transpôr, distorcer. Mau Tempo no Canal é, segundo Martins Garcia, "a síntese de todas as ficções de Nemésio e o remate de toda a idiossincrasia açoriana", avançando com a ideia de que toda a ficção nemesiana é um percurso em direcção a uma ilha perdida, funcionando esta como um mito. Por isso as ilhas do Faial, Pico, S. Jorge e Terceira (ilhas reais) serão recriadas e transfiguradas pela pena magistral de Nemésio em ilhas ideais, sonhadas ou pressentidas.

No dia 27 de Agosto de 1944, Nemésio concede uma entrevista ao "Correio dos Açores", na qual afirma. "Parece-me que fiz realmente um romance das ilhas - a nossa gente, a nossa lava, o nosso mar" (...) "escrevi um livro de atmosferas, de sonho, de ilhas" (...) "Os Açores estão mais ou menos na raiz de tudo quanto faço. A tartaruga puxa sempre para o mar".
Ora, sendo um livro sobre ilhas, Mau Tempo no Canal é hoje considerado não apenas um dos melhores romances portugueses do século XX, como uma obra já pertencente à literatura universal.

Este livro é a saga, é a epopeia e é o grande romance da açorianidade, termo e conceito criado, em 1932, pelo próprio Nemésio (ao que parece, por decalque de hispanidad, de Unamuno). Trata-se, como é sabido, de uma obra prima. Que o é por três tipos de razões: pela densidade e perfeição da sua forma e estrutura; pela riqueza psicológica das suas personagens, ou seja, pela expressão dos sentimentos humanos; e pela maneira como o autor desenvolve aspectos históricos, culturais, sociais, míticos, etnográficos e científicos relacionados com as nove ilhas dos Açores. Só é pena que, neste tempo em que vivemos saturados de comunicação, informação e imagem, continue este romance a ser mais conhecido do que lido...

Mas foi Nemésio que, muito antes do advento da Internet, do CD-Rom e da imagem virtual, já nos havia avisado: "A literatura requer despreocupação e disponibilidade"...

Horta, 25/02/2002

Victor Rui Dores

Bibliografia

(1) José Martins Garcia, Vitorino Nemésio, a obra e o homem, Arcádia, Dez. de 1978.

(2) Ibidem.

(3) Vitorino Nemésio, Corsário das Ilhas, Livraria Bertrand, Lisboa, 1956.

(4) Vitorino Nemésio, Sob os Signos de Agora. Temas portugueses e brasileiros, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932.

(5) Heraldo Gregório da Silva, Açorianidade na prosa de Vitorino Nemésio - Realidade, Poesia e Mito, I.N.C.M., Lisboa, 1985.

(6) Cf. (3).

(7) Vitorino Nemésio, Mau Tempo no Canal, capítulo XXV, Bertrand, Lisboa, 1944.

(8) Cf. (1)