Lúcia Maciel - Artesã

MULHER SEM FRONTEIRAS

Lúcia Maciel, entre a fumaça de um cigarrinho pendurado nos cantos do seu alegre discurso, e infindáveis sorrisos, encontrou-se connosco para nos relatar um pouco da sua vida e da arte que, nos últimos anos, a tem levado para paragens que jamais pensara ir.

No expositor que erguera nos fundos da espaçosa sala do Sport Club Lusitânia, Lúcia exibe ao público os seus trabalhos em folha de estanho eximiamente executados. São trabalhos que requerem minúcia e paciência, virtude que devo confessar não possuir, para que os temas religiosos, antropo e zoomórficos em que se inspira, tomem forma na fina camada de estanho que veio a ser o seu metier.

Natural da Freguesia de São Mateus, Pico, onde nasce a 16 de Fevereiro 1953, Lúcia cedo vem a fixar-se com sua família na cidade da Horta no Faial. Anos depois, já casada e com filhos, transfere-se para a Freguesia da Ribeirinha, onde, como tantos outros, sofreu a devastação do cismo de 1998 que abalou aquelas ilhas. Descreve esta experiência como "fulminante". Viu sua casa em escombros e perdeu todos os seus pertences. Contudo, com a determinação e coragem que caracterizam este povo ilhéu, avança. Aguarda há cinco anos, num pré-fabricado, a sua nova casa que, nesta altura, se encontra na última fase de construção. Conta-nos que, tantos anos depois, ainda haver muitos açorianos desalojados.

Nascida numa família numerosa de seis irmãos, Lúcia, ao completar a instrução primária, viu-se obrigada, aos 13, a ingressar no mundo do trabalho para auxiliar seus pais no sustento e educação dos seus irmãos mais novos. Mais tarde, já adulta, chega a frequentar o ensino nocturno, tendo atingido o sétimo ano de escolaridade. Foi trabalhar para uma loja de tecidos na Horta, num labor hoje desaparecido, e que reflectia as dificuldades que, naquela época, se faziam sentir, que era apanhar malhas corridas nas meias de senhora, trabalho minucioso e de muita precisão. Após uma temporada de ano e meio, a jovem Lúcia arranja emprego como balconista numa ourivesaria onde permanece 36 anos. Como o decorrer do tempo, e estando os proprietários já com idade avançada, Lúcia assume a gerência da loja. Agrada-lhe o contacto com o público, especialmente com os emigrantes e turistas que ali afluíam, e com quem Lúcia aprende a língua inglesa. Após 36 anos, Lúcia descobre que sofre de osteoporose, agravada pelas muitas horas de pé, e é aconselhada pelos médicos a desempregar-se e repousar.

De temperamento irrequieto, Lúcia sente dificuldade em adaptar-se à inactividade. Durante algum tempo dedica-se ao croché e bordados, mas isto não lhe bastava ao seu espírito empreendedor. Ainda empregada na ourivesaria, interessa-se então pela culinária e chega a fornecer de casa salgadinhos, pastéis, bolos e outras iguarias para festas e outros eventos, complementando, desta forma, o seu salário numa tentativa de assegurar melhor futuro para seus filhos. Mas, ao fim de quatro anos, é obrigada a cessar esta actividade pelos já referidos problemas de saúde.

Resolve procurar uma actividade que não lhe exigisse tanto esforço, não só por necessidade monetária, mas também para alimentar o seu ávido espírito. Ouve falar de uns cursos profissionalizantes na área do artesanato, patrocinados pela Secretaria Regional de Economia. Na altura em que resolve inteirar-se dos cursos, descobre que o curso de estanho estava em decurso, e a monitora sugere-lhe que ingresse neste, não obstante já estar a meio. Aconselha-a a focar, sobretudo, na área das técnicas e Lúcia acaba por frequentar o curso durante dois dias somente. Isto passou-se no mês de Abril de 2001. Nesta altura, Lúcia não adivinhava as repercussões que estes dois dias viriam a ter no seu futuro, pois encarara aquela actividade como um escape pessoal e uma oportunidade para criar alguns artefactos decorativos para a sua nova casa, visto ter perdido todos o seus bibelots e peças decorativas no violento cismo que atrás referimos. A monitora promete-lhe auxiliá-la a desenvolver a arte, visto ter aproveitado tão poucos dias de aulas.

A pedido de sua monitora, Lúcia produz o seu primeiro trabalho, um quadro que levou quinze dias a completar, para inclusão na exposição de trabalhos das alunas do Centro de Formação e que leva a diversas festas estivais na Horta. A reacção da monitora ao inspeccionar esta primeira tentativa da artesã, foi deveras surpreendente, pois esta, de imediato, sugeriu que Lúcia embarcasse numa exposição individual. Tinha a artesã já, a partir dos parcos alicerces que recebera no Curso, desenvolvido um estilo próprio e algo inovador neste metier, optando por linhas direitas e singelas sobre o metal limpo e claro, desviando-se dos motifs barrocos tradicionais em estanho escurecido. Era uma natural, e assim, aos quarenta e sete anos de idade, abre-se a página artística no Livro da Vida de Lúcia. Decide trabalhar com afinco e, ao fim de três meses de árduo labor, Lúcia estava pronta a exibir as suas criações ao grande público na Semana do Mar de 2001.

Surpreende-a a reacção do público. Chovem perguntas e encomendas e aparece-lhe de repente a RTP-Internacional para fazer uma reportagem sobre a sua pessoa e os seus trabalhos em estanho. O diário faialense "O Telegrafo" dedica-lhe a primeira página e abre-se o mundo das feiras de artesanato regionais e nacionais. Munida já de sua carteira profissional de artesã, Lúcia prontifica-se a embarcar nesta nova etapa de vida.

O trabalhar do estanho remonta à época dos Romanos. Hoje, Lúcia traz novo e inovador alento a esta arte milenar com a sua visão cristalina e minimalista. Angaria para si um novo nicho do mercado com este salutar "desvio" do artesanato em moldes tradicionais em que o público se habituou ao trabalhos em linho, miniaturas, flores em escama de peixe, etc. Mais, este trabalho tem sido executado ao longo dos séculos por homens e Lúcia, assim, é pioneira, como mulher, ao situar-se neste campo. Descobre que a sua vivência na ourivesaria onde uma vez trabalhou, onde viveu de perto com belos artefactos e joalharias, lhe aguçara o seu sentido estético latente. Descobre que, em suas mãos, o seu imaginário encontrava forma nos desenhos que, entretanto, começou a conceber e executar com matrizes para os seus trabalhos em estanho.

Procura personalizar as suas peças, buscando fazer a leitura de cada cliente o que este pretende do objecto que irá executar.

A primeira feira em que veio a participar foi a Festa do Senhor Santo Cristo em Ponta Delgada. Foi um estrondoso sucesso. Recebeu várias solicitações no sentido de partilhar com outros artesãos e interessados o segredo da sua técnica única, e numerosas encomendas. Esteve ainda na EXPO 2003, onde fez muitos amigos, e inclusive, foi convidada a afiliar-se à Associação de Artesãos de Lisboa. Ainda na capital, foi encorajada a frequentar uma Acção de Formação para Formadores para poder leccionar. Em Agosto de 2003, atravessa o Atlântico para expor na Festas do Espírito Santo em Fall River, EUA. Mais um êxito, onde, além dos muitos compradores que afluíram à sua estante, suscitou o interesse da média local, tendo sido entrevistada pelo um canal Televisivo 29 de língua portuguesa. Foi abordada no sentido de abrir um posto de venda nos EUA. Depois, Toronto e o 17° Ciclo de Cultura Açoriana. Ficou com boa impressão do nosso burgo. Lúcia diz-nos que, apesar de estar longe, parece estar em casa, encontrando em cada canto da cidade alguém falando a sua língua.

Lúcia Maciel, uma mulher sem fronteiras, que desbravou, já em idade madura, as terras virgens da sua natureza artística, provando, mais uma vez, que o voo do espírito não obedece a condicionalismos temporais e ilusórios, e que cada momento potencia, para todos nós, um novo começo. Bem-haja, Lúcia!

Para mais informações é favor contactar:

Lúcia Maciel, Horta, Faial
Tel: 351-96 463 9091/ 96 425 2753
E-mail: carlos_manuel_maciel@hotmail.com