OS ROMEIROS DO “TORRÃO NATAL”

“Ave-maria, cheia de graça, o Senhor é convosco, …” é o que ouvimos num tom de cântico abafado e, muitas vezes, o resfolgar de gritos de alma que rezam por todos nós, pedindo pelo nosso arrependimento e pela concessão de inúmeras graças para que todos possamos alcançar a tão desejada paz e saúde no seio daqueles que mais amamos. É desta forma que anualmente em S.Miguel se juntam grupos de homens, desde o Sábado a seguir à Quarta-feira de Cinzas até à véspera do dia de Páscoa numa caminhada constante por todas as freguesias da ilha, com o intuito de visitar todas as igrejas de Nossa Senhora e agradecer-lhe pelo dom da vida e pelo filho que nos enviou: Jesus Cristo.

Em primeiro lugar, podemos questionarmo-nos o seguinte: por que razão se assiste a estas romarias, que mobilizam um tão grande número de pessoas, apenas em S.Miguel e o porquê de antecipar a Páscoa e não poder realizar-se em qualquer altura do ano? Ora, no início do século XX, a população micaelense foi testemunha de diversas erupções vulcânicas e sismos, logo muita gente morreu e os restantes passaram a juntar-se todos os anos em forma de romarias, com o objectivo de pedir perdão a Deus pelos seus pecados e, também, pedir-Lhe que não houvesse mais cataclismos na ilha. Esta manifestação de fé segue-se à Quarta-feira de Cinzas pelo facto de neste dia a igreja relembrar ao Homem que este veio do pó e que, por isso mesmo, se transformará em pó; após uma vida meramente transitória e cheia de fragilidades. Neste dia, a igreja inicia o período da Quaresma, convidando o Homem, em geral, e o romeiro, em particular, a retirar a “máscara” (daquilo que não é, mas que gostaria de ser) e a despojar-se de tudo, inclusive da sua família, para mostrar aos outros e, ainda, para ele próprio tomar consciência de que a Providência Divina é imensamente superior a ele e que é a Única que lhe poderá garantir viver muitos instantes de felicidade, transmitindo-lhe, deste modo, a harmonia necessária para conviver com os outros.

Hoje em dia, não testemunhamos em S.Miguel cataclismos daquela dimensão; no entanto, esta tradição religiosa impera e há mais homens a reunir-se aos micaelenses, pessoas que se deslocam de outras ilhas e até mesmo gentes da diáspora que se unem nesta longa caminhada; caminhando, rezando e partilhando com os irmãos (designação pela qual se tratam naquele período de tempo) os seus sentimentos e necessidades mais intrínsecas. A que se deverá este aumento do número de pessoas nas romarias num mundo onde se diz que já não há valores? Bem, a resposta é simples. Na vida quotidiana, o stress é cada vez maior e as pessoas quase não têm tempo para respirar, muito menos para tomarem consciência da sua vida, daquilo que está bem (e agradecer a Deus por isso) e daquilo que está menos bem (e fazer um esforço para colmatar as falhas), logo na Quaresma, tempo de caminhada e de reflexão, é altura de o Homem fazer um esforço para encontrar o equilíbrio entre a cabeça e o coração; que o mesmo será dizer entre a razão e o sentimento; dualidades que contribuem para que sejamos unos na nossa complexidade de seres humanos. Assim, na romaria, os homens terão um tempo e um espaço próprios para reflectir sobre eles mesmos e sobre a sua conduta social nas mais diversas vertentes, com a oportunidade única e genuína de traçar um novo caminho para a sua vida. Só assim, a Quaresma constituirá um período de tempo válido como preparação interior, cujo objectivo máximo será a celebração da Páscoa como uma festa que deverá ser circunscrita nas nossas vidas; sinónimo da passagem do pecado para um pleno estado de graça e harmonia interior.

Algumas pessoas poderão dizer que alguns homens vão nas romarias em forma de passeio; todavia, se alguns vão com esta disposição no primeiro ou no segundo dia; no terceiro dia, o cansaço acaba por prevalecer e os instantes de silêncio tomam parte numa “travessia no deserto” ou viagem metafísica, bastante dura e desafiadora, que todos nós, muitas vezes, também fazemos no interior de nós próprios e cujo objectivo é romper com um passado oco e solitário e lutar por um futuro onde permaneça “a poética da relação” com o outro, como nos diz Edward Glissant nas suas obras, para que o Homem também seja uma alma poderosa espiritualmente.

Torna-se de crucial importância salientar, ainda, o aspecto etnográfico do romeiro micaelense, tão representativo da maneira como Jesus foi escarnecido após a sua flagelação. Deste modo, o xaile simboliza o manto que Jesus usava naquele momento, sinónimo de abrigo; o lenço representa a coroa de espinhos que Lhe puseram na cabeça; o bordão é sinónimo daquele que Jesus utilizava, também para apoiar o seu corpo e guiar os seus passos, tal como os passos do romeiro e, finalmente, o saco de comida do peregrino, que significa, ainda, a cruz que Jesus levava às costas, como que a representar o fardo do romeiro, a sua vida, o seu destino e o de todos nós.

Por outro lado, os homens que desejam integrar-se num rancho de romeiros devem recorrer a uma preparação física e psicológica, as quais são indispensáveis para que valha a pena percorrer as estradas da ilha numa caminhada de plena circunscrição da presença do outro na sua vida. Deste modo, cada um deve inscrever-se no grupo de romeiros da sua freguesia para ser contactado aquando das reuniões e encontros de preparação que antecedem o grande dia. Nestes encontros, todos ensaiam o cântico de louvor ao Senhor e recordam alguns valores morais, aos quais devem dar atenção para colocar em prática durante e após a sua vivência de romeiro. Destes valores, podemos enfatizar a comunhão e a ajuda mútua entre todos os irmãos, assim como a fraternidade de uns para com os outros, aliada à verdadeira obediência ao Mestre, que os orienta em múltiplos aspectos, tais como: as horas de saída e de chegada, a casa em que vão pernoitar e ensina-lhes a rezar o terço, numa conversa muito íntima com Deus. O Guia é respeitado, também, como símbolo da luz que ilumina o caminho a percorrer e; por fim, o Procurador de Almas, que recebe as perguntas do povo e reza por este. Durante aqueles sete dias, todos os irmãos recebem a Eucaristia e tomam a comunhão. Atente-se na duração da caminhada, que se prolonga durante sete dias: número bíblico que indica plenitude, em que o Homem está entregue a si mesmo para se reencontrar consigo, com os outros e com o Senhor seu Deus.

Em suma, ser romeiro em S.Miguel ou em qualquer parte do mundo é sinónimo de um forte testemunho de fé numa força superior a todos nós; que para nós Católicos, se trata do nosso Deus - Jesus Cristo e que para outras pessoas, poderá ter outra designação. Todavia, o importante é não esquecermos que o Homem pode ser dono de muitas coisas e tomar muitas decisões (pois o seu livre arbítrio assim o permite), mas, no fundo, não é dono de si. Posto isto, ser romeiro não é fácil, pois é aquele que dá a cara e que admite perante todas as pessoas que tem fragilidades e que necessita de se agarrar a algo para tentar beber um pouco da força do Senhor e, posteriormente, sentir-se mais forte para enfrentar e ultrapassar os obstáculos da odisseia da vida. Contudo, todos nós podemos ser romeiros, a partir do momento que tenhamos a coragem de fazer uma paragem nas nossas vidas (por algumas horas ou alguns dias) e questionarmo-nos sobre a nossa conduta, isto é, comparando-a com aquilo que sempre sonhámos para nós, com a forma como fomos educados e com aquilo que nos encontramos a defender e a apregoar ao longo da nossa caminhada quotidiana; no que concerne à nossa forma de agir connosco, com o outro e com Ele. Talvez, a partir deste momento, consigamos encontrar paz de espírito em pequenos nadas na nossa vida, como respirar e apreciar o sorriso de uma criança e, assim, adormeceremos com a consciência mais leve todas as noites, nas quais a harmonia interior passará a ter um tempo e um espaço de maior dignidade no nosso percurso existencial.

Professora Célia Carmen Cordeiro