O Perfume dos Cravos de Abril no Cabo da Boa Esperança


Memórias de uma filha da diáspora

Por Adelina Pereira

Na segurança e conforto do lar paterno, anichado nas verdejantes encostas da Montanha da Mesa, cresci e fiz-me gente. Naquele universo suburbano, branco e mui anglo-saxónico, Portugal, e suas gentes baixas e algo estranhas, remetiam-se, na minha mente adolescente, para as esferas longínquas do imaginário, a portugalidade um conceito quasi-mítico que habitava a minha imaginação fértil com outras iluminadas figuras, como os heróis homéricos e o Rei Artur e seus cavaleiros da celticidade.

Mas um belo dia, as imagens nebulosas que povoavam o meu onírico tomaram contornos bem mais tangíveis e materializados. Acontecera que o Cape Times, o matutino daquela cidade sita no extremo do continente africano assinalando, não só o ponto de encontro de dois grandes oceanos, mas também dos diversos povos do globo em processo migratório, anunciava, naquela manhã, numa pequena e magra coluna empurrada para a margem da primeira página, a morte do ditador português, António Oliveira Salazar, e a "ascensão ao trono" do seu "dauphin", Marcelo Caetano.

Lembro-me bem que as poucas linhas, redigidas em tom frio, factual e algo indiferente sobre o acontecimento, não suscitaram em mim qualquer reacção, pois possuía eu, nesses tempos, tão parcos conhecimentos sobre a realidade histórico-social do país dos meus ancestrais. Pouco empatizara com aquelas palavras atiradas ao acaso naquele breve, e quase insignificante artigo.

Era como se, no grande tabuleiro universal, o que decorria entre portas naquele pequeno torrão nos confins civilizacionais europeus não tivesse qualquer relevância, qualquer eco na vida dos demais povos, tal era a minha ignorância e a de tantos outros filhos e netos da emigração lusa em terras anglófonas.

Em Abril de 1974, o jornal Cape Times publicou, mais uma vez na primeira página, uma foto algo tremida a preto e branco de um punhado de militares empoleirados precariamente num veículo blindado, circundados de uns quantos civis de punho erguido. Coup d' etat in Portugal rezava o cabeçalho, não se prolongando para além de dois breves parágrafos o texto que se seguia. Este informava que naquelas paragens longínquas tivera lugar uma sublevação das forças armadas do país que, com o largo apoio das populações urbanas, tivera derrubado o regime de Caetano sem qualquer derramamento de sangue.

A reportagem, em estilo sucinto e nu, não ousava tecer quaisquer considerações ou comentários de índole política, a favor ou contra. E assim se falou da tentativa dos soldados de Abril de conduzir Portugal de um estado policial para um estado de pleno direito, democrático e livre, pois nenhuma jornalista que prezasse a vida, mesmo amante da verdade, ousaria fazê-lo. Como é do conhecimento geral, a África do Sul constituía, nessa amargos tempos, um estado policial em que a vida e Deus eram alvos, de preferência de olhos azuis e cabelos louros. Até houvera uma proposta apresentada no parlamento por um deputado mais zeloso do Partido Nacional no sentido de reclassificar os portugueses ali radicados como não brancos. Fundamentou-se o ilustre deputado num descabido argumento que o elemento mouro teria conspurcado a pureza dos lusitanos, relegando-os assim à inferioridade rácica e genética, mescla a qual que em nada favorecia o sonho de supremacia branca que os ideólogos do regime do Partido Nacional acalentavam.

Em 1974 ocorreram os grandes movimentos estudantis por toda a África do Sul. As constantes e consistentes manifestações encheram as ruas das suas cidades com placards e largas colunas de jovens asiáticos, negros e crioulos que reclamavam em alta voz, qualidade de ensino e programa escolares iguais aos seus pares brancos.

O tumulto propagou-se e rapidamente às fileiras de manifestantes estudantis juntaram-se os trabalhadores explorados das indústrias que sustinham toda a economia do país e cujo poderio residia nas gananciosas mãos do empresariado sul-africano, muitas das vezes em parcerias pouco transparentes com interesses norte-americanos e ingleses.

As ruas fervilhavam com dissidentes de todos os quadrantes ideológicos, unidos por um único objectivo comum, o de dar fim à injustiça social rompante naquela bela e riquíssima terra.

Imbuída de uma voz, um chamamento, uma lucidez, vindos não sei de onde, juntei-me aos manifestantes, correndo com estes pelas ruas desvairadas da baixa do Cabo ante uma feroz e impiedosa força policial que, a título preventivo diziam eles, atirava incessantes barragens de "balas de borracha" sobre a multidão.

Mas o sangue que jorrava rubro das feridas abertas da velhinha que tombara ao meu lado, manchando o meu vestido primaveril de vermelho, o desmentia. As crianças, algumas ainda de tenríssima idade, espancadas nas valetas como jumentos no trabalho; a chegada à casa de outros meus amigos, também eles activistas, anunciava diariamente mais um caso de alguém conhecido cujo filho ou filha desaparecera sem deixar rastro; o olhar de soslaio para as esquinas esquivas da noite, temendo o súbito aparecimento de uma quadrilha de polícia secreta envoltos em seus discretos e cinzentos fatos e enigmáticos óculos de sol, tudo isto nos assombrava os dias de 74!

Circulavam rumores pelos correios da clandestinidade que fulano tal fora apreendido, ninguém sabendo ao certo do seu paradeiro, que centenas de crianças mulatas e negras foram envenenadas nas cadeias como pulgas pulverizadas, e tantas outras assombrosas estórias de arrepiar o couro cabeludo!

Ouvimos falar de Maria, ex-freira, filha de imigrantes portugueses, que tivera a coragem ímpar de casar em cerimónia religiosa pública com seu amado, um dos activistas anti apartheid mais audíveis da comunidade crioula do Cabo, e como a sua "lua de mel" se limitara aos inóspitos aposentos de uma prisão!…

…E assim, em Abril de 74, daquela modesta e esbatida imagem que aparecera fugaz na página de um matutino transbordara para a minha alma híbrida o perfume dos cravos de Abril, imbuindo de Boa Esperança o sangue que corria abundante pelas ruas sofridas do Cabo das Tormentas!

Ao redescobrir este texto da autoria de Alan Paton, o célebre escritor sul-africano e desde sempre uma voz no deserto do preconceito clamando a justiça para os injustiças e oprimidos, decidi transcrevê-lo pois a sua mensagem coaduna-se com a do 25 de Abril e é extremamente actual no contexto conturbado em que o mundo se encontra, com os povos a digladiarem-se por valores balofos e ocos.

Alan Paton nasceu branco, tendo herdado os privilégios reservados a estes no antigo regime racista da África do Sul. Paton alcançou a fama a mundial com o seu magnífico e controverso romance "Cry the Beloved Country", a saga de um negro emaranhado na impiedosa teia de um sistema político-social repressor. O livro foi quase profético, antevendo no seu personagem central a trágica mas heroica figura de Steve Biko.

Este texto extraído de uma colectânea de textos e artigos de sua autoria intitulada "Save the Beloved Country" refere-se à morte de um soldado branco aquando das lutas fronteiriças contra a guerrilha da ANC e aliados que se infiltravam a partir de suas bases em Angola.

Lament for a Young Soldier

The church is already full when I get there although I am not late. The atmosphere of love and grief is palpable. I have to sit near the front, in fact very near the family. Therefore I have to watch - I cannot help watching - the grief of a young boy weeping for his soldier brother. It makes me weep also.

The usual unanswerable questions are asked. Why so young? Why does God demand the life of one who has hardly begun? Has he been called away to some other service?

We are counselled not to blame God, or the Government, or the Army, or the ones who killed him. This is life and one must accept it.

Man that is born of woman has but a short time to live. He comes up and is cut down like a flower. He flees as it were a shadow, and never continues in one stay.

There is one question that is not asked aloud here, and that is for what did he die? But it is in the minds of many of those who have come to mourn for a young soldier, and for those whom he has left behind. For what did he die?

Did he die for the maintenance of our way of life? I mean, for the White way of life, for it is the White people of South Africa who say what the way of life must be.

Did he die for the continuance of the Group Areas Act? Did he die for detention without charge or access?

Did he die for a system of justice, one of whose chief officers found that no-one could be held responsible for the death of Steve Biko?

Did he die for a system of education that has sent thousands of children into the streets, burning, stoning, cursing?

Or did he die in the hope that the Group Areas Act might be repealed? That detention without charge or access might be abolished? Or the hope that any person who sent a sick prisoner naked to Pretoria might be brought to what is called justice? Did he believe that he was gaining time for such things to happen?

Or did he go to fight because his friends were going to fight? Or because he felt no call to be a conscientious objector? Or because he loved his country and didn't want to leave it?

One is not supposed to ask these questions. The asking of them is supposed, in some queer way, to show that one does not love one's country. The asking of them is supposed to undermine morale, and to sap the confidence that the cause is just.

The reasons for fighting are quite simple for some. You fight to resist Communism on your Christian world. You fight for the right to go on living your just and free life. You fight to repel those who want your gold and your platinum and your coal. Your society may not be perfect, but you are trying to make it better.

Inside this church there is nothing but love, but outside, even in the streets of this quiet city, there is hate. You don't just weep for the young soldier who is dead, and the younger brother who grieves. You weep also for your country.

It's the Comrades Marathon today, one of the greatest sporting spectacles in the world. Everyone has come to watch. Everyone is happy, everyone is gay. There are more Black runners than ever before. As each one appears, a young Black woman with great bobbing joins the race and runs with him, laughing and ululating, an exhibition of pure and innocent joy. I suppose she is interfering with the race, but the other runners don't seem to mind.

In front of me are four older Black women. They also clap and call out to the Black runners, but they also have a soft spot for the White running madams, and call out encouragement to them.

They have another soft spot for the White khehlas, most of whom acknowledge this applause. A Black man on the bank banters the khehlas in Zulu, and those that understand him acknowledge his witticisms.

A White runner, say in his forties, still full of energy after five hours' running, claps his hands vigorously at the four women, and calls out to them in Zulu: "Clap for me, clap for me," which they do enthusiastically.

Is it all real? It seems real enough. People could not simulate this gaiety and joy. There are no stones here, no curses, only encouragements.

Two faces of South Africa, the one full of hate, the other full of joy. Or should we say three faces, for there is one that is full of grief. Not just because a young soldier is dead, but because of this vision of what our country might be, and is not.

The Natal Witness - June 6, 1980

Notas: Khehlas - idosos
Group Areas Act - Legislação que impunha a segregação e o isolamento dos vários grupos étnicos em zonas residenciais próprias