Página: 1 / 2 / 3 / 4 / 5 / 6 / 7 / 8 / 9 / 10 / 11

I ENCONTRO LUSO-MARANHESE

São Luís porta (grande) de entrada
para um Brasil (injustamente) desconhecido

Reportagem e Fotos de
José Ferreira e Vasco Oswaldo Santos
Adiaspora.com

(Maio 2006)


São Macaio, São Macaio deu à costa
Ai! deu à costa, nos baixios do Maranhão.
Toda a gente, toda a gente se salvou
Ai! se salvou, só o São Macaio não...

(Canção popular açoriana)



Centro de Guarulhos

Andarilhos e observadores do mundo que somos, não nos queremos imunes a surpresas. Viajar, seja em reportagem ou em lazer, é sempre como uma torre de observação atenta, do pormenor mais ínfimo à realidade mais gritante. Só assim vale a pena, só assim faz sentido.

Foi nesta tónica que estes modestos escribas iniciaram o caminho para São Luís do Maranhão, num voo tecnicamente sem história, de Toronto a São Paulo e, depois, desta que é a maior metrópole da República Federativa do Brasil até ao norte, em duas etapas, via Brasília, com mudança de aviões rapidíssima, tipo sair de uma porta e entrar noutra a ver o carrinho transportar as nossas malas.

Julgamos que a melhor maneira de contar esta aventura será em tipo de diário de viagem, um estilo que as nossas gentes de Toronto apreciam bastante mas que a maioria dos donos dos jornais ainda não se aperceberam, assim como de muitas coisas mais...

Toronto, ON, 4 de Maio de 2006 – Saída do novíssimo Terminal 1, uma novidade para um de nós que só a conhecíamos de umas reportagens efectuadas há dois anos, durante os períodos de construção e acabamento. Aerogare ampla, moderna, pronta a movimentar muita gente mas que se encontrava quase vazia. Comparada com as dos aeroportos principais da Europa é como que comercialmente amorfa. A tal modéstia típica dos canadianos – julgamos...

Uma ligeira, mas monetariamente inflacionada refeição rápida antes de se meter o nariz nas poucas lojas a funcionar, muito mais parcas que as do Terminal 3. Aí a gente reparou que já não devemos ser tão ligeiros como gostaríamos de ser: um carrinho daqueles de transportar gente com problemas de locomoção aproximou-se de nós e a mocinha de sorriso aberto ofereceu-se para nos levar ao “Duty Free”...ou foi só porque havia pouca gente e ela queria justificar o emprego?

De qualquer forma, a oferta apagou o mal-estar causada pela vigarice tolerada pela Greater Toronto Airport Authority que pouco antes nos vitimou. É assim: a gente pega um carrinho à entrada para carregar as malas. Paga 2 dólares, e recebe 25 centavos quando o devolve. Tudo bem, é assim que as grandes obras se pagam. Só que, para se poder efectuar esta operação é necessário haver algum espaço para que o carrinho accione a mola que liberta a moedinha e fique arrumadinho à espera de conseguir outros 75 cêntimos. Mas não. Propositadamente, os arrumadores enchem o carril de carros até mais não, a mola não acciona, o carrinho fica bem colocado, e a moeda... nicles!

Já lavrei o meu protesto – por questão de princípio, claro – à GTAA, em Inglês...

Embarque à hora, partida à hora, refeição plástica ao atingir a altitude e velocidade de cruzeiro. Serviço sofrível de uma companhia de bandeira (nacional) como a Air Canada é. Turbulências, só o aviso destas e o mandar apertar os cintos (coisa que tanto os portugas como os brasucas têm séculos de experiência, no mais lato sentido da frase). A verdadeira turbulência é a de acordar a gente para uns estremecimentos que de outro modo nem sentiríamos ou nos acordariam. Tudo bem, mais vale prevenir que remediar.

Guarulhos, São Paulo, SP, 5 de Maio de 2006 – Pequeno-almoço com sol a nascer, nove horas e meia depois da descolagem de Toronto. São Paulo fica num planalto, a 900 metros acima do nível do mar, e nesta época do ano, tem temperaturas idênticas às de Toronto. Colinas verdejantes na aproximação. Selva pura. Aqui e ali uma mansão com piscina, símbolo de uma classe cada vez mais rica a contrastar com a das favelas que começam a vislumbrar-se. O aeroporto Internacional de Guarulhos, cidade periférica como Malton/Missisauga é o mais movimentado do Brasil. É dali que se parte para o resto do País, mesmo que, como foi o nosso caso, tivéssemos de voar mais cinco horas para o norte, que já havíamos sobrevoado...


Fusca: sempre jovem no Brasil

Algumas idiossincrasias locais: o passageiro que chega do estrangeiro pode ir ao “Duty Free Shop”, onde tudo se paga em dólares americanos. Só que depois é melhor declarar o que traz. Um jovem funcionário alfandegário, agarrado ao telemóvel e com um sorriso deleitado com a pessoa do outro lado da comunicação, mandava os passageiros para a inspecção alfandegária ou para a saída, de uma forma totalmente arbitrária, sem perguntas ou mesmo um olhar mais demorado. E continuava deleitado a sorrir abstracta e descontraidamente para o/a interlocutor/a...

A inspecção é muito mais moderna que no Canadá. As malas passam ao raio-X numa maquineta enorme, de grande ecrã, para distrair as pessoas que aguardam a sua vez de distraírem os que se seguem naquela morosa vistoria.

Tudo bem, o nosso próximo voo era daí a dois dias e ninguém nos esperava. Mas foi chato porque um casal à nossa frente trazia 4 sacos com produtos de cabeleireiro, de cores garridas: champôs, amaciadores, lacas, todas alinhadas como um exército de embelezar no balcão da alfândega. A moça do casal tinha um computador portátil e a sentença da funcionária foi fulminante: pagar 800 dólares (US) para entrar com ele no Brasil. Ao fim de muita espera, lá dissemos que gostaríamos de saber o que quereriam revistar da gente. Nada, apenas um sorriso e ida para a rua. De soslaio, olhámos para o primeiro (mal) empregado alfandegário. Lá continuava ele, agarradinho ao telemóvel, de sorriso pepsodente para um/a parceiro/a do outro lado do éter... assinalando sem ver os que podiam sair ou tinham de ir à revista! Os bons “profissionais” são assim, em qualquer parte do Mundo.


Locomotiva de café - Jardim de Guarulhos

O resto da manhã deu para passear em Guarulhos, cidadezinha periférica de Sampa (assim lhe chamam carinhosamente os locais). É local pobre, com alguns bons hotéis e supermercados, um jardim com uma locomotiva que me fez saltar o coração. Um bom primeiro almoço no hotel de uma cidade cuja peculiaridade é a de uma paragem de autocarros que, de manhã à noite, tem filas permanentes de mais de 500 utentes à espera das carreiras para a gigantesca metrópole.

De tarde, o nosso primeiro grande passeio: táxi até ao bairro português da Bexiga. Entre um casario baixo e incaracterísticos, algumas mansões tipicamente lusas, umas recuperadas e lindas, outras lindas e em ruínas. A arquitectura é variada e por isso as fotos que acompanham estes textos e falam por si.


Uma rua do Bairro da Bexiga - São Paulo

Sempre a subir, acabámos na grande artéria de São Paulo, a Avenida Paulista, onde todos os arranha-céus dispõem de heliportos e o zumbido das libelinhas mecânicas se sobrepõe à de um tráfico automóvel alucinante. Um chopinho (cerveja a copo) que foi o primeiro. Depois, calcorrear aquela via das grandes multinacionais e bancos de todo o mundo, com preponderância para o Santander (espanhol) que em grandes cartazes com os craques do futebol brasileiro, se vangloria de ter sido recentemente considerado como o melhor banco da Europa. Eles lá sabem...

....
Contrastes - Portão artístico em ferro e limpeza do terreno da feira

Só um banco, porém, o Citibank, aceitava nas suas terminais electrónicas, os cartões de débito do Canadá. Aqui fica o aviso à navegação: quer for ao Brasil deve levar Reais suficientes consigo para as primeiras despesas, porque depois é difícil trocar os dólares canadianos.

A reportagem fotografou e andou milhas, muito para lá do anoitecer rápido e brusco. Para uma cidade como São Paulo, a iluminação pública está longe de ser feérica como aquela a que estamos habitados no hemisfério norte das Américas. Mas as nossas pernas recusavam-se a parar: andava-se, observa-se, comentava-se, recolhiam-se impressões jornalísticas e de outras apreciações mais corriqueiras. O Zé Ferreira é muito menos exuberante que eu. Mas tem uma capacidade de fixar coordenadas que poupam muito tempo na vez seguinte. Já tarde, com algumas inesperadas compras, regresso ao Hotel de Guarulhos para uma noite de muito dormir e uma sensação de ter visto este mundo e o outro. E era só o primeiro dia!


Artéria de luxo: Avenida Paulista ao entardecer

Guarulhos, São Paulo, SP, 6 de Maio de 2006 – Sábado é um dia que adoro. Está tudo aberto e a gente tem o dia por conta (quando não trabalha). O Zé tinha tirado as coordenadas de como chegar ao centro histórico paulista. O táxi levou-nos até à intersecção da Avenida Rio Branco com a Duque de Caxias, que está triunfante, de espada na mão, numa estátua equestre que o nosso motorista tão bem descreveu como “montado num cavalão”. O Zé procurava sapatarias, eu uma loja onde pudesse comprar um conversor de corrente para viagem, a única coisa que me esqueci em Toronto. Por sorte, estávamos, inadvertidamente, na zona dos electrónicos, com milhares de pessoas nas ruas e nas miríades de lojas da especialidade. Curiosamente, lembrava o conceito medievo das ruas de “artes e ofícios” onde só se vai para comprar precisamente um determinado tipo de produto. Só que os conversores no Brasil são vendidos em lojas de ferragens e não de electrónicos. A busca foi o melhor guia turístico que poderíamos almejar. O que a gente viu e observou!!! Ambos os repórteres encontraram o que procuravam. Depois foi andar até os pés doerem e as bexigas nos lembrarem das nossas precisões. Aí, as polícias omnipresentes (é ano de eleições e os candidatos camarários, estatais e federais querem mostrar obra), desde as militares às de outras denominações, armados até aos dentes mas correctíssimos para connosco, nos informaram que casas de banho só num centro comercial, que as públicas se encontravam fechadas.


O Duque de Caxias no seu "Cavalão"!

Os centros comerciais têm seguranças e hospedeiras em cada canto. Uma delas, nem pestanejou quando a pergunta foi formulada e levou-nos directamente ao “palácio das necessidades” onde mediante meio real a gente se aliviou. O almoço foi numa churrascaria que vende a comida a peso. É assim: a gente entra e recebe à porta um cartão electrónico. Vai ao buffet, coloca no prato, chega à balança, a funcionária pesa tudo, regista no cartão. A gente come, bebe, apresenta o cartão à saída, na caixa, paga e sai, entregando à mesma primeira empregada o cartão já descarregado, sinal de pagamento. Comentário do Zé Ferreira: - Porque é que não pesam a gente à entrada e depois à saída? Assim já sabiam quanta comida a peso a gente tinha ingerido, não é? – Concordei. Mas depois pensei um pouco e descobri que só tinha um problema: é que neste caso a gente ficaria vedado de usar a casa de banho antes de sair, não?

Fomos rindo rua abaixo, com gente nas compras até mais não. Em frente ao Teatro Municipal, descobrimos que as estátuas de dramaturgos de origem portuguesa têm as placas indicativas arrancadas das peanhas. Uns dizem que por vingança contra o antigo colonizador, outros que é para vender a peso o metal de que são feitas. A verdade mais dura é que um jardim tão belo como o que se encontra frente ao teatro é um mictório público onde a fonte luminosa está seca e as escadarias laterais são clepsidras de urina...

Ao fotografarmos, numa técnica genuinamente simples de protecção mútua, a única aproximação duvidosa da toda a viagem: Daquela gente sentada no chão, dois jovens aproximaram-se para oferecer os seus “serviços”. O tom de voz do Zé foi peremptório e imperioso: - Somos jornalistas, estamos a trabalhar e não precisamos de nada! – Os moços insistiram. Foi aí que no mesmo tom a coisa se resolveu de vez: - Aqui não há nada para ninguém, perceberam? – Eles perceberam mesmo.

Caminhada valente para esmoer a lauta refeição. Um cheiro a café faz-nos entrar num botequim acolhedor. Pedimos dois cafés. O patrão detecta o nosso falar e diz: - Os senhores conhecem Setúbal? – Respondi que há meses fui lá almoçar para andar no comboio da Ponte 25 de Abril. O sorriso abriu-se. O senhor era da rainha do Sado de onde saiu há 35 anos para não mais regressar. Contei-lhe da saga do Vitória que iria no domingo seguinte à final da Taça com o Porto. Bebeu-nos as palavras. E ficou mais feliz ainda ao saber que o 8.º Exército já tinha levado a Taça o ano passado para a cidade de Bocage e Luísa Todi. Afinal, o meu falecido e saudoso compadre Renato tinha montes de razão quando dizia no seu inconfundível linguarejar alentejano: - O mundo é uma data de Bejas juntas!


Camões enclausurado até em estátua...

E por falar em linguarejar, assunto que frequentemente o leitor irá encontrar nesta recolha, é importante que se saiba que os brasileiros identificam o português que nós falamos mas nem sempre o entendem direito. O que é normal. Aparentemente a gente fala muito depressa e em São Paulo há que martelar as vogais para a gente se fazer entender. Dois exemplos vividos por nós: - Depois de visitarmos a estátua de Camões, rodeada de uma forte vedação a impedir a aproximação do monumento colocado frente à Biblioteca Municipal da Cidade, sabendo que estávamos próximos à Rua da Liberdade, onde fica a Casa de Portugal, o Zé inquiriu a um transeunte se estávamos perto. O homem soletrou liberdade e depois num rasgo de espanto: - Ah, Libérdádji!!! E mostrou o caminho, que para nossa sina, fica perto da Rua Augusta, uma via que sai de uma zona pobre e termina na mais rica de Sampa, o Bairro dos Jardins, uma zona que mete Forest Hill num chinelo e que adiante voltará a ser mencionada.

O segundo exemplo foi comigo no voo do dia seguinte para Brasília. A aeromoça (é assim que se designam as hospedeiras de bordo por estes ares do sul) trouxe café e eu solicitei adoçante em vez de açúcar. A jovem embatucou, depois arregalou os olhos e disparou: - Não será ádoçántji que deseja? – Era isso mesmo. As minhas diabetes aprenderam então que há mais de uma maneira para se pronunciar a alternativa ao açúcarzinho que, por muito abuso, agora lhe é sonegado.


Casa de Portugal em São Paulo

Isto pode parecer ridículo mas a gente andava desde a véspera à procura dessas lembrancinhas magnéticas que, nas portas dos frigoríficos indicam os sítios por onde temos laureado a pevide. Toda gente indicava onde havia, mas quando lá chegávamos, não tinham. Eis que na praceta antes da Casa de Portugal, centro da maior concentração de japoneses fora do país do Sol Nascente, os encontrámos numa alegre feira onde surpreende ver orientais apenas a falar português. É uma verdadeira “Japan Town” por onde passei num fim de tarde de 1972, no mesmo propósito, mas entre ruas abertas e encerradas à circulação devido à construção do “metro”. E é ali que está lindíssima a nossa Casa. Só que era sábado, não passámos do átrio cheio de placas a atestar a passagem de tudo o que é político português ou militar dos tempos da ditadura brasileira. E foi pena não podermos visitar mais. Mas a peregrinação obrigatória cumpriu-se com foto e tudo.


A bela Helena, nossa guia por excelência!

Anoitecia e era altura do telefonema de cortesia para a Helena Martins, funcionária do atribulado Consulado de Portugal em São Paulo, dirigente e representante para o Brasil do STCDE (Sindicato dos Trabalhadores Consulares e das Missões Diplomáticas). Ela morava perto e uma curta viagem de “metro” nos levou ao encontro dela num centro comercial de gabarito. Daí, a nossa generosa e simpatiquíssima transmontana e paulista proporcionou-nos uma terceira visita de cidade, desta feita ao famoso Bairro dos Jardins, o mais elegante da cidade, onde se encontra em grande luxo o consulado português, em condomínio fechado, pejado de seguranças, tal como a residência da Missão, um assunto que deixaremos para outra oportunidade mas que tem vindo a ser denunciado, a par do Consulado de Londres, em vários locais da internet e órgãos da comunicação social lusa dos dois lados do Atlântico. Só que serviço é serviço e conhaque é conhaque e a hora era deste último. Chatices de trabalho são para ficar enterradas ao fim-de-semana.

Próxima Página